quinta-feira, 28 de junho de 2018

Diário: 5 de agosto de 2011





(Uma verdadeira obra de arte criada pelo jovem e talentoso ilustrador Enthony Vieira exclusivamente para este blog)



5 de agosto de 2011.


A gente vê que a arte de um país está ruim quando o principal poema de uma cidade comentado pela mídia nos últimos anos é feito por um delegado de polícia. Ele foi fazer um relatório de um crime lá no Riacho Fundo. Fazem a maior propaganda e tal desse caso para a vida de brasiliense. Aqui a vida é bem medíocre mesmo. Ele pode até ser bom, mas é uma vergonha total nós estarmos tão abandonados desde que o Renato Russo morreu. Mais um dos nossos desertos.              

A minha filha me contou uma novidade bombástica: está namorando a distância. Fiquei impressionada. Não arrumava nenhum namorado há uns 3 anos, desde os tempos da faculdade. Ela disse que fala com o Hernandez, um argentino com nome de conquistador barato, por meio de um programa chamado Skype. Ela até comprou uma webcam para falar melhor com ele. Assim, dá para ver olho no olho. Para essa geração, a imagem definitivamente vale mais do que mil palavras. Amor a distância é infinitamente melhor do que a distância do amor que está ao nosso lado. Eu tinha uma amiga que falava que era mais fácil largar do que lutar por um amor. Não sei por que eu fico pensando nisso. Na verdade eu sei. O Henrique aos poucos está voltando ao normal. Só me abraçou por remorso, não por carinho. Ele é assim e, infelizmente, é assim que ele vai continuar sendo. Só que quando estamos carentes, o sentimento é tudo que temos.

De fato, o amor não é um direito. Nenhuma constituição fala do direito do amor, que devia ser tão essencial quanto a água. O amor é uma possibilidade, não um direito universal. Não adianta culpar o mundo pela natureza que ele tem. O negócio é ir aguentando as pancadas que a vida nos dá.

Queria que o Fernando Pessoa ou qualquer outro tivesse me dado uma saída para esse inferno. Só que, quando estamos num deserto, todos os caminhos estão cobertos por areia e as portas de saída têm jeito de miragem. No fim das contas acho que sinto isso mesmo: vivo em um deserto em que a cidade inteira é coberta de areia e a felicidade se encontra em oásis nas miragens que eu vejo de vez em quando. Tem gente que vê o oásis na vida política, na amorosa, na família e até no futebol. Essa ideia de deserto não sai da minha cabeça. Esses dias eu sonhei que estava andando na Esplanada dos Ministérios, mas tudo estava coberto por areia. Só vi que era a Esplanada por conta do Congresso Nacional, que não estava totalmente coberto. Se bem que podia ser uma miragem no deserto. O que será que esse sonho quer dizer? Que eu me sinto num deserto deu para entender, agora ver o Congresso no meio do deserto realmente é algo muito estranho. Às vezes mil palavras não são suficientes para explicar uma imagem.


(Criado, assim como os demais dias do diário, por Fernando Fidelix Nunes)

sexta-feira, 22 de junho de 2018

5 minutos de futebol da Seleção


5 Minutos de Futebol da Seleção


O Brasil fez uma atuação bastante sofrível para o torcedor nesta sexta-feira. Nem a possibilidade de beber antes de meio-dia sem se sentir um alcoólatra foi suficiente para diminuir o sofrimento. Errávamos gols que nas eliminatórias eram rede na certa. Nossos jogadores estavam visivelmente angustiados e estressados a cada lance. Por exemplo, aos 43 do segundo tempo, 2 minutos antes do Brasil começar a fazer o que sabe, Neymar estava a plenos pulmões ofendendo adversários e até o árbitro em inglês, espanhol e português. Pelo meu conhecimento linguístico, ficou evidente a sua fluência em conversas de baixo nível nos três idiomas, o que é absolutamente necessário para um atacante tipicamente brasileiro.

Como torcedor, afirmo que senti o medo de repetir a angústia da Argentina. Imaginem só passar pelo vexame de Messi e demais agregados. Cada bola defendida pelo Navas, mito que jamais havia perdido em Copas para uma seleção campeã do mundo, era uma angústia a mais. Parecia que nem o menino Jesus, responsável por uma bola na trave, seria capaz de fazer o milagre do gol. Sim, o gol brasileiro deixou de ser uma possibilidade natural para se tornar um milagre, uma benção, uma glória ou uma verdadeira dádiva divina.

Neymar, profissional em cavar pênaltis, esqueceu-se de que hoje existe o árbitro de vídeo. Na Copa passada até dava para cavar um na malandragem, mas com a tecnologia as coisas mudaram muito. Ele sabia que não tinha sido nada. O chato é que a gente comemorou o pênalti e se encheu de esperança. Aumentou-se a justiça e prolongou-se a angústia, ou seja, o futebol conseguirá aumentar ainda mais a quantidade de ataques cardíacos decorrentes de emoções esportivas que pessoas indignas chamam de “apenas um jogo”.

Então, vamos aos cinco minutos que interessam. O Brasil pressionava a Costa Rica mais do que o Donald Trump foi pressionado pelo mundo para rever sua política imigratória. Era chute de fora da área, cabeçada na trave, cabeçada fraca, chute fraco, trombada de todo jeito, cruzamentos de toda natureza e tudo mais que o futebol disponibiliza, menos o gol. Até que Firmino, dono do sorriso mais brilhante da Copa, escorou de cabeça para o menino Jesus deixar Coutinho frente a frente com Navas. O craque do Barcelona mostrou todo o seu talento ao meter um bico na bola que passou debaixo das pernas de Navas. Inacreditável isso! É só no futebol. Os brasileiros, aptos para todos os tipos de técnicas, estão entre os melhores do mundo e acabamos fazendo um gol nos acréscimos por meio de uma técnica típica dos nossos artilheiros de pelada: o bico. E ainda por cima foi por debaixo das pernas do goleiro, que era para ser o lugar mais improvável. Suspeito que a mística da camisa 11 de Romário, mestre em fazer gols de bico em mundiais, vai fazer escola com esse menino.

Nesse momento o país entrou em êxtase puro. As pessoas se abraçavam, bebidas voavam, gritos de toda ordem tomavam conta até nos pontos mais recônditos da nação tupiniquim. Até o técnico caiu no chão. Obviamente, que os grupos de WhatsApp também nos deram diversos exemplos dessa comemoração. Conheço até um amigo que publicou em incontáveis grupos: “Coutinho, me engravida, seu lindo!”. Sim, senhoras e senhores, um gol brasileiro na Copa do Mundo é capaz de fazer um homem querer ser mãe de um filho de um jogador que até 2 minutos atrás era xingado a plenos pulmões pelo mesmo ser humano. Coisas da vida moderna.

A comemoração ainda estava em andamento quando nos momentos finais Douglas Costa tocou para Neymar, sem goleiro, sem zagueiro, sem árbitro e sem medo de errar mandar para a rede o segundo. Foi uma euforia só. Aqueles que cornetavam Neymar passaram a tratá-lo como gênio e mito. Ele chorou. Lágrimas sinceras. Isso me preocupa. O jogador brasileiro não deve chorar por vencer a Costa Rica no segundo jogo de uma fase de grupos. É uma imaturidade semelhante à de um adulto chorar por ter quebrado uma garrafa de whisky cara. Mas tratarei do psicológico dessa geração em outro momento.

Dessa vez cinco minutos foram suficientes, mas devemos jogar como Brasil durante 90 minutos para sermos o país do hexa. Agora é torcer para vencer a Sérvia e para a Nigéria eliminar a Argentina.

(Crônica feita por Fernando Fidelix Nunes)
            

Diário: 31 de julho de 2011


(Ilustração feita por Leonardo B. Ferreira)

31 de julho de 2011.

Enxergo na cara dos meus filhos a absoluta repulsa de voltar a viver as suas rotinas. Eles queriam fugir mais, mas não podem! Precisam encarar as coisas. Onde eu errei para que eles não fossem capazes de lidar com a vida? A gente erra querendo acertar na maioria das vezes. Se bem que eu também errei na minha, não era para as coisas serem como elas são. Raramente a gente acerta quando erra. Trocadilho idiota. Ultimamente eu não ando muito inspirada. A gente sente, mas não sabe falar ou não quer mesmo. Vai saber o porquê das coisas hoje em dia e sempre.

Fiz uma tapioca no café hoje. Foi tapioca com ovo. Todos em casa gostaram da surpresa. É bom saber que eu ainda tenho o poder de fazer algo diferente que faça a alegria do povo aqui de casa. Pra melhorar eu ainda fiz um suco de laranja. Eles até me abraçaram de um modo especial. Disseram que se sentiam bem em voltar para casa. Mentiram, como sempre. Brasileiro tem disso de mentir por convenção. Pena que a gente só recebe algo especial quando faz algo especial. Queria esse carinho no dia a dia. Impressionante como a gente é fascinada por aquilo que não pode ter. Seria tão mais fácil se fosse de outro jeito.

Pelo menos eu não fico mais pensando na Tereza. Não sei nem por que eu falei nela. Para mim o passado está morto. Isso tem o seu lado bom, mas o problema é que quando você não traz nada do passado fica tudo colorido de cinza. Aquele cinza triste como um deserto de areia com degraus de areia para um oásis perdido. Nossa, que vontade de apagar o que eu escrevi. Pena que eu não tenho nada melhor para botar no lugar. Entre não colocar nada e deixar ruim é melhor deixar como está. Qualquer coisa é melhor que ter um vazio no coração e no papel. Ninguém vai me ler mesmo.

E aí vem agosto, mês do desgosto! É como falam as pessoas pessimistas, mas pra mim todo mês tem o mesmo gosto amargo. Essa minha vida anda precisando de um açúcar e de um sal bom. Um dia muda. Um dia.

(Essa é uma ficção escrita, assim como os demais dias do diário, por Fernando Fidelix Nunes)

terça-feira, 19 de junho de 2018

Rússia 2018: A Tradição na Lata do Lixo


Rússia 2018: A Tradição na Lata do Lixo


Após essa primeira rodada, não resta quase nenhuma dúvida de que a tradição foi jogada na lata do lixo nesta Copa do Mundo na terra de Dostoiévski. A badalada Argentina não foi capaz de superar a humilde seleção islandesa, estreante em mundiais. Ver Messi errando um pênalti, definitivamente, tem o seu valor. Nesse ritmo, poderei continuar dizendo aos meus amigos que eu tenho a mesma quantidade de Copas do Mundo que ele. Neste ano, a Argentina está completando 25 anos sem vencer um título FIFA. Nesse tempo eu já perdi a conta dos títulos que eu vi o Brasil ganhar. Até Colômbia, Grécia, Japão, Portugal e Chile venceram mais títulos que a Argentina neste milênio. Já imaginaram quantos milhões de argentinos não sabem o que é gritar “é campeão”? Quando eu estou triste, confesso que penso nisso e logo me animo.

Pior foi a estreia da Alemanha, nossa eterna algoz. Perder para o México na estreia é absolutamente deprimente. Eles precisam vencer a Suécia, que vem querendo fazer história no meio de tantas zebras. Do jeito que as coisas andam, vai virar tradição a seleção campeã ser eliminada na primeira fase – lembrem-se dos recentes vexames de Itália e Espanha. Só que isso parece ser bom demais para ser verdade.

O Brasil, para variar, fez uma estreia confusa e nervosa. Uma vez que não tivemos uma contribuição substancial da arbitragem, como tivemos em 2002 e 2014, não conseguimos estrear com os desejadas e tradicionais 3 pontos. A nossa seleção fez o nosso canarinho querer se depenar todo. Nossos badalados e valorizados jogadores não fizeram uma partida digna da amarelinha. Esse negócio de goleiro que não é muito feio não costuma dar muito certo – se vocês acham que é superstição ou inveja, só se lembrem das alegrias dadas por Taffarel e São Marcos. Bem feito o juiz ter sido incompetente. Não adianta nem botar a culpa do árbitro de vídeo, porque não jogaram o suficiente e não mereciam vencer o time do Rodriguez. Sim, público leitor, havia um suíço chamado Rodriguez. Esses tempos de globalização são assim mesmo. Antigamente, nome de suíço era tão difícil de ser dito que o narrador chegava a gaguejar na hora e dizer umas 5 pronúncias diferentes por partida. Hoje não! Os Rodriguez chegaram à terra dos lindos alpes.

Entretanto, a Copa do Mundo, assim como o mundo político, não permite o vácuo. Há várias seleções de olho na chance de ouro de levantar a taça mais almejada do planeta! Cristiano Ronaldo está babando a cada lance. Ele teve três oportunidades de gol e não perdoou em nenhuma contra a Espanha. Eu vi o jogo dele contra Gana aqui em Brasília na Copa passada. Ele teve 5 chances, mas só deixou um gol. Agora dá para ver na cara dele a vontade de ganhar o título. Depois do jogo, ele foi cumprimentando os companheiros e foi gritando: “até o final, vamos até o fim!”. A nossa seleção precisa é desse espírito. Espanha e Inglaterra também sonham alto. Sentem que estão com uma de suas melhores gerações. Bem... sonhar não custa nada.

Por fim, quero fazer uma observação: tem coisa que só jogadores sul-americanos vão fazer entre quatro linhas. Quintero fez um gol de falta chutando por baixo da barreira, que pulou num ímpeto heroico. É claro que essa jogada já foi patenteada por Ronaldinho Gaúcho, mas os únicos que conseguem fazê-lo em momentos decisivos estão abaixo da Linha do Equador.
               
(Escrito por Fernando Fidelix Nunes)

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Diário: 27 de julho de 2011

(Ilustração feita por Leonardo B. Ferreira exclusivamente para este blog)


27 de julho de 2011.

Meus filhos voltam amanhã das viagens. A Giovana mandou mensagem falando que amou tudo o que conheceu. Ela tirou um monte de fotos e disse que vai postar tudo assim que voltar para casa. O Daniel só falou que está chegando com os amigos. Sei que na mensagem ele disse amigos, mas ele queria dizer bonde. Ele não deve ter nenhuma foto não. Só deve ter feito um monte de coisa errada mesmo. É fácil entender as coisas, difícil é aceitar que as coisas são como elas são. Difícil, mas não impossível para quem sente que a coisa tem que andar, ainda que com dificuldade.

Estava lendo O Livro do Desassossego e li o fragmento 257. Lá ele diz: “O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem destreza é uma simples massa”. Como em duas frases esse homem foi capaz de colocar tanta sabedoria? Nossa vida é isso, de nada adianta conteúdo sem forma. Muita coisa poderia ter sido evitada se eu soubesse disso de forma efetiva. É como a beleza física. Tem gente que tem valor só porque é bonita. Com mulher é ainda pior. Parece que a gente não tem valor se não for bonita. Parece não, a gente não tem mesmo. E quando fica velha fica pior. Até meus trinta anos eu percebia os homens me olhando. Depois disso, fiquei passando despercebida pelas ruas. No final é melhor, já que não tem nenhum imbecil falando ou fazendo coisas inadequadas comigo. O ruim é saber que isso deixa de acontecer não por respeito, mas por uma decadência física. Seria tão bom não ligar para a opinião dos outros.

Isso é na vida também. Podemos ter absoluta razão em cada palavra que falamos, mas a maneira como falamos é decisiva para que sejamos ou não levados em conta. Por que o ser humano é tão idiota em relação a isso? Conteúdo deveria valer mais do que forma. O conteúdo é o que mais tem importância nas coisas e ações. O ser humano faria do mundo um lugar melhor se olhasse mais para o conteúdo do que para a forma. A forma ilude. É como uma sereia bela que canta, encanta e devora.

Acho que digo isso por conta da minha vida mesmo. Ela tem uma forma linda, mas esconde um conteúdo podre como a carne de um pombo atropelado.

(Escrito, assim como os demais dias do diário, por Fernando Fidelix Nunes)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Diário: 24 de julho de 2011

(Ilustração feita pelo grande Leonardo B. Ferreira)

24 de julho de 2011.

Fiquei sem escrever por vergonha de mim. Não consigo nem me olhar no espelho. É tão ruim o que eu passei que eu não tenho nem vontade de contar. Nenhuma mulher no mundo deveria passar pelo que eu passei, nenhuma sequer. Mas quantas passam por isso mais de uma vez? Muitas mesmo. Nessa semana que passou eu reparei que muitas mulheres passam pelo que eu passei mesmo. Toda hora aparece uma notícia no jornal sobre isso. Mas elas têm a coragem de contar o que aconteceu para o mundo, eu não. Às vezes outras pessoas é que têm a coragem pra falar a verdade.

É engraçado como essa sociedade suja relativiza a violência de um homem contra uma mulher. Devia haver uma prisão automática para o homem que maltrata a mulher. Só assim nós não seríamos culpadas por destruir a vida de um homem quando, na verdade, somos vítimas. Pena que o mundo é cego. Cego para a injustiça, cego para desigualdade e cego para quem precisava ser visto.

Só estou enrolando aqui, porque no fundo eu não quero contar nada pra ninguém do que aconteceu. Mas este é meu diário. É como se eu sentisse a necessidade e a obrigação de falar a verdade a ele sobre tudo que aconteceu. Se eu esconder dele, eu falarei para quem? Minha família está lá em Minas, bem longe de mim, o que é ruim numa hora dessas. Dizem que família é para todas as horas, mas quando temos uma relação distante com a família, a família só serve para se convidar em casamentos e enterros, que são duas coisas muito parecidas às vezes.

Depois que alguém passa por algo parecido com o que eu passei, qualquer um vê que essa vida não vale a pena. Fernando Pessoa estava errado nessa. Eu realmente queria que fosse apenas um sonho, um sonho não, um pesadelo. Mas a vida não é tão simples quanto pode parecer. A vida é um pesadelo imperceptível ao coração frustrado focado em sobreviver à rotina. Bem acho que já enrolei demais é melhor falar logo tudo de uma vez para eu não ficar mais nessa. Que vergonha de mim!

O Henrique chegou em casa tarde e cheirando a cachaça. Ele se sente mais livre para beber quando os nossos filhos não estão em casa. Ele já chegou vomitando no banheiro. Um nojo absurdo. Depois a gente deitou e acabamos fazendo aquilo mais por convenção do que por paixão. Até aí nada demais. Na verdade isso já é vergonhoso, mas o que viria foi bem pior.

Só que na noite seguinte, enquanto ele tomava banho para sair eu vi o celular dele tocando. Era a Tereza. Não atendi o telefone. Quando ele saiu do banho eu coloquei para fora a ira que eu tinha dentro de mim. Xinguei ele e perguntei quem ele pensava que era para tratar o nosso casamento desse jeito. Chamei ele de canalha, cretino, vagabundo, filho da puta e tudo o mais. Não chamei, eu xinguei gritando com toda a minha força. Ele foi cínico fazendo cara de inocente. Até que eu gritei com ele que a Tereza nunca mais iria voltar para ele e que ele era um trouxa por achar que ela voltaria a dar uma chance a ele. Quando eu gritei isso na cara dele ele me deu um tapa na cara com toda a força que ele tinha e ainda me xingou: “cala a boca, desgraçada!”.

Só consegui olhar assustada pra ele. Ele simplesmente olhava para mim e pareceu também não acreditar no que tinha feito. Tive total repulsa a ele e a toda a casa. Não pensei duas vezes... saí correndo de casa. O Henrique não fez nada. Mentira. Ele tentou me segurar, mas eu ameacei chamar a polícia e ele me largou. Depois disso, eu fui embora de casa.

Andei pela Asa Norte sem rumo. Eu só chorava. Como era noite, vi poucas pessoas nas ruas. Quando eu via que ia passar perto de alguém eu me controlava, depois voltava a chorar. Sentei num banco atrás de um posto e escondi minhas lágrimas em meus braços nus. Quanto tempo fiquei assim? Não sei. Mas foi o suficiente para eu sentir a dor mais aguda da minha vida. Me culpei mais do que tudo. Como eu havia deixado a minha vida chegar àquele ponto e como sair dessa merda era o que eu mais me perguntava enquanto soluçava desesperadamente.

Quando um rapaz veio e me perguntou se eu precisava de alguma coisa, eu tive só o reflexo de dizer que não queria ajuda de ninguém. Agora eu entendo que eu tinha vergonha e medo absoluto de que alguém visse a minha cara machucada e roxa. Eu ainda não sabia, mas desconfiava. Saí dali imediatamente quase que correndo. Andei pela calçada rachada e acabei parando embaixo de uma árvore já entre 304 e 303 norte. Parei e chorei até as minhas lágrimas secarem. Sem lágrimas no rosto a razão tomou conta do sofrimento na minha mente. Eu ali não adiantaria de nada. Só estava me arriscando. Quanto tempo poderia ter passado? Eu não fazia ideia. O sofrimento nos faz perder a noção de muita coisa. Decidi voltar pra casa.

No caminho pude perceber a paisagem. Não me lembrava de ter andado de madrugada pela Asa Norte. As ruas eram tão vazias e tão calmas que eu me senti dona de tudo aquilo. Eu andava pelas calçadas e percebia que o verde da grama ganhava um tom tão melancólico. Era como se a ausência de luz lhes tirasse a vida. Os animais que estão soltos à noite também têm algo de triste. Alguns se sentem mais livres para revirar lixos, gatos sobem em cima dos carros, pombos brigam por um pedaço velho de pão e até os ratos correm com mais liberdade. A noite é isso mesmo, a liberdade daqueles que foram reprimidos durante o dia. Talvez seja por isso que eu não saia tanto à noite. Senti-me parte daquele meio todo. Um animal sem as repressões de costume tentando sobreviver. É impressionante como as coisas levam outras cores para a escuridão. A iluminação das ruas é apenas o mínimo necessário para o trânsito dos seres. É só uma tentativa do ser humano querer mandar na natureza. Mas a noite sempre será noite, não importa o que o homem faça.

Quando estava na 106, sim achei melhor caminhar para baixo pela beleza do caminho entre a 106 e a 107, comecei a pensar no que faria se visse o Henrique em casa. Não tinha a menor ideia do que eu ia dizer ou falar. Pensei em ir a uma delegacia nesse momento. Na verdade, eu acho que pensei nisso antes, mas só naquele momento eu fiquei realmente decidida a botar um ponto final em tudo isso. Antes fiquei apenas pensativa nessa hipótese, que era apenas um borrão no meu coração. Naquele momento eu comecei a ver o que poderia acontecer na delegacia. Primeiro eu teria de ir a pé até uma delegacia. Depois eu ia acabar indo tendo que contar tudo nos mínimos detalhes pra depois abrir uma denúncia. Abrir uma denúncia. Essa era a ideia que prendeu na minha cabeça. Eu simplesmente parei de andar nessa hora. Parei completamente tudo. Até de pensar. Senti um buraco no chão se abrir. Imaginei o total constrangimento, não só de contar a história, mas também de enfrentar um processo. O que seriam dos meus filhos? O que a nossa família ia pensar? O que eu ia fazer da vida? Para onde eu iria durante o processo? Na verdade vieram pelo menos umas 20 perguntas e questionamentos na minha cabeça. Só que eu não lembro de tudo e já estou com vergonha de deixar isso registrado ainda que ninguém veja nada disso.

Resolvi procurar um carro para me olhar num espelho e ver meu olho. O meu olho estava roxo e inchado. Senti vergonha de mim e raiva do Henrique. Depois senti raiva de mim. Como isso pôde acontecer logo comigo? Uma droga. Foi o que eu pensei, o que eu senti, o que vivi. Não fiquei muito tempo olhando pra não dar chance de alguém ver e perceber o que eu estava passando e sentindo. Nem sempre a vida é gloriosa. Na maioria das vezes, na verdade, a vida é dura, triste e indigna da dor que carregamos com ela. A vida passa, a dor e a melancolia ficam. O roxo na minha cara, sem dúvida, vai se desmanchar aos poucos, a dor no rosto vai passar, mas a angústia continua. Não importa o que eu fizesse, perdi a batalha e a guerra, definitivamente. Não via nenhuma saída. Confesso dei um pulo na igreja da quadra para ver se conseguia alguma luz divina. Rezei tudo que sabia. É engraçado que quando a gente precisa da divina providência não vem nada. Não tive resposta de nada. Sinceramente, posso confessar aqui que eu me senti abandonada até por Deus naquele momento. Onde estava Deus no meio de tudo isso? Onde Deus poderia me socorrer? Perguntei isso e outras coisas aos céus, mas não tive resposta nem orientação.

No fim decidi ir para casa e ver no que dava. Encontrei o Henrique aos prantos e me pedindo desculpas. Ele chorava como uma criança arrependida. E eu o abracei como se nada tivesse acontecido. Ele até resolveu cuidar de mim. Pegou um gelo e me abraçou de uma maneira como ele não fazia há anos. Disse que a Tereza tinha ligado para falar de um evento da família surpresa. Sei que era mentira, mas fiquei quieta. Eu senti que ele me queria como nunca na vida. É como se a culpa dele se tornasse carinho por mim. Fiquei quase que quieta o restante da noite falando coisas muito simples e fazendo gestos frios que opunham à quase entrega absoluta dele para mim. A vida é assim. No fim das contas, ninguém tem razão de nada, mas eu tenho total vergonha de mim. Vergonha acho que é uma palavras simples demais para o que eu senti de mim. Foi pior, bem pior.

Nessa semana ele foi um amor e até me levou para sair, mas eu sei que isso vai durar pouco. Eu sei. Só não sei o que fazer. Até lá sinto... não sei nem dizer o que eu sinto. Ainda bem que pelo menos não preciso mais escrever sobre isso. Já deu.

(Escrito, assim como os demais dias do diário, por Fernando Fidelix Nunes)

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Diário: 17 de julho de 2011



17 de julho de 2011.

Hoje o Henrique falou que ia sair para um futebol no início da noite para esquecer a derrota da seleção. Nossa uma verdadeira vergonha ser eliminado sem acertar nenhum pênalti para o Paraguai. Paraguai! O que é o Paraguai? Acho que só não é pior do que, segundo o Henrique, ter sido eliminado para Honduras. Como homem consegue ter uma memória tão boa pra futebol e esquece do resto? Eles fizeram o mais difícil, que é errar 4 pênaltis. Se estão assim agora, imagina na Copa do Mundo. Vai ser uma vergonha. Acho que esse técnico e esse elenco precisam mudar, e logo. Se bem que em futebol é céu ou inferno. Mandam logo embora quem não nos apetece.

O narrador ficou falando que o Brasil jogou melhor. Se o time teve um monte de chances e não aproveitou ele não jogou bem. E olha que eu nem entendo tanto de futebol! Esse povo parece que tem medo de acertar. Errar 4 pênaltis é um sintoma bem forte disso. Acho que tão ruins quanto os nossos jogadores são nossos narradores de futebol. Assassinam a língua como verdadeiros criminosos. Se bem que as pessoas erram tanto podendo acertar de um jeito fácil.

O Henrique ficou muito frustrado e irritado e disse que ia jogar futebol, sair com os amigos e que não tinha hora para voltar para esquecer as mágoas. Às vezes o casamento vira isso: um conjunto de formalidades. Ele está aproveitando porque vai tirar uns 10 dias de férias a partir de amanhã. De certa forma estou de férias, mas com a cabeça voando como nunca.

Esse negócio do futebol me fez pensar um pouco sobre a vida. É meio triste de se pensar, mas necessário. As pessoas, infelizmente, sofrem muito por coisas sobre as quais não tem nenhum controle. O que podemos fazer a respeito de um jogo de futebol? Nada! Botamos o destino da nossa felicidade nas mãos, ou nos pés dos outros. Nós sofremos muito por deixar os nossos destinos ou vontades dependendo mais dos outros do que de nós mesmos. Por conta disso eu não entendo o amor que as pessoas tem pelo futebol. Nos outros esportes as pessoas são mais comedidas. A gente não vê gente se batendo por conta dos outros esportes ou até ficando absolutamente deprimida. Só o futebol faz isso. O problema é que todo torcedor quer o seu time ganhando sempre. Isso não vai acontecer nunca. O Henrique mesmo fala todo formal no trabalho dele e nos eventos em família. Aí chega no futebol e vira um animal que diz palavras que eu nunca imaginaria sair dele. No início eu nem reconhecia mais meu marido, mas com o tempo a gente aceita as pessoas como elas são. No amor é assim: a gente sofre, mas, no fim, aceita as pessoas como elas são.

O futebol se tornou algo tão natural na nossa sociedade que eu mesma não consigo nem imaginar como seria o mundo sem futebol. É mais fácil eu imaginar o mundo sem o Henrique do que sem futebol. A ideia do divórcio passa de vez em quando pela minha cabeça. Mas ela só passa, pois jamais terei a coragem de materializar esse desejo.


(Escrito, assim como os demais dias do diário, por Fernando Fidelix Nunes)