As Intermitências
do Brasil
A cada semana que se passa eu me sinto cada vez mais imerso em uma conjuntura
social inimaginável até mesmo para gênios da literatura especialistas em criar
realidades caóticas, como José Saramago. Para quem não conhece a obra desse
escritor português e não entendeu direito, eu vou fazer uma síntese explicativa
bem acessível. Nos enredos do Saramago, é bastante comum acontecerem coisas
chocantes para a humanidade: as pessoas terem uma cegueira branca cuja causa é
desconhecida, votarem apenas em branco nas eleições e até pararem de morrer. Um
conhecido meu do centro espírita que eu frequento me deu informações fidedignas
de que ele está nos observando do outro mundo lamentando não ter sido capaz de
produzir em vida um enredo tão complexo quanto a história recente do Brasil. Além disso, ele afirmou que se diz decepcionado com a mediocridade dos nossos artistas frente a este momento periclitante.
Andando
pelas ruas de Brasília nesta semana tive, assim como milhões de brasileiros, a
certeza de que assistia à materialização de um momento histórico, daqueles que
veremos futuramente em documentários, filmes, artigos acadêmicos e livros
didáticos em formato digital. Filas quilométricas para abastecer em postos de
gasolina e as ruas, aos poucos, se tornando cada vez mais ermas. Isso ainda é
tranquilo se compararmos com as possibilidades que se avizinham: “intervenção”
militar, desabastecimento crônico, confrontos nas ruas, mortes desnecessárias,
surtos políticos e o que mais a imaginação for capaz de conceber como trágico.
Enfim, estamos de pernas para o ar como a casa de um solteirão depois de um mês
sem faxina.
Num
primeiro momento, uma parte considerável dos brasileiros, seguindo nossa
tradição, faz piadas nas redes sociais. Um professor que eu conheço chegou até
a postar em sua página no Facebook que “não são todos os alunos que estão
felizes em não terem aula nesta sexta-feira, só os normais” – uma paráfrase
igualmente canalha de uma frase de Nelson Rodrigues. Entretanto, a calamidade
da situação nos leva, pouco a pouco a olhar com mais seriedade e prudência o
caos iminente que nos aguarda. Nos meus quase trinta anos de vida, o que é uma
estrada razoável, nunca vivi uma conjuntura tão complexa e acho que não viverei
para ver cinco anos tão conturbados e incompreensíveis quanto os últimos,
capazes de trucidar a credibilidade de praticamente todas as nossas instituições.
A ação dos
caminhoneiros não parece ser um movimento político consciente baseado em
ponderações aristotélicas e amplas. É a materialização do desespero da crise
que os puxou para a beira do colapso do subdesenvolvimento, essência do nosso
país desde a colonização. Se fosse algo pensado para ser assim, não conseguiria
ter o mesmo efeito e, principalmente, a mesma pujança. No Brasil é assim: nós
pensamos que é um plano arquitetado nos mínimos detalhes por manipuladores dos
fatos, quando na maioria das vezes as coisas caminham de um jeito estranho e
sem uma justificativa plausível mesmo. Mas, como os fatos ainda não foram desvelados,
tem uma probabilidade considerável de eu estar errado. Contudo, desconfio que
tenho razão.
Parece que não
há qualquer interlocução direta. As lideranças de movimentos trabalhadores, que
foram se desmoralizando de forma brutal nesta década, negociaram com o Palácio
do Planalto e aceitaram, em sua maioria, um acordo capaz de reduzir o preço dos
combustíveis. O problema é que isso não surtiu quase nenhum efeito no
movimento. Os caminhoneiros continuam indignados e querem mandar o governo
pastar se não sentirem uma mudança significativa no preço dos combustíveis.
Nessa
conjuntura complexa e quase sem fim, vemos nas redes sociais verdadeiros
oportunistas dando soluções. Alguns medíocres especialistas em dizer apenas o
que os outros querem ouvir chegaram a afirmar que fizeram a sua parte e que as
coisas seriam resolvidas com algumas soluções simples. A cultura popular às
vezes é o melhor caminho para desmascarar esse tipo de gente: “falar é fácil,
difícil é fazer”. E é por aí. Tem gente que faz parecer fácil acabar com os
graves problemas da nossa sociedade, mas que no duro não conhecem o país
tupiniquim em que sobrevivem milhões de brasileiros. Mãos invisíveis e várias
intervenções antidemocráticas são panaceias tão utópicas e fantasiosas quanto a
história de três porquinhos se defendendo de um lobo malvado e faminto.
Perdemos.
Infelizmente, para o momento, essa é a constatação mais inevitável. Falhamos
como grupo dia após dia. Deixamos um sistema absolutamente corrupto e
incompetente se formar e se consolidar de modo fisiológico em nossa república.
E, acreditem, se isso fosse só nos cargos representativos, estávamos numa
situação menos caótica. Trabalhando no GDF há cinco anos, percebi como a
administração pública costuma, com algumas exceções, seguir uma meritocracia de
cabeça para baixo: quanto mais pilantra, picareta, personalista, dissimulado,
incompetente, despreparado e menos projetos capazes de mudar a sociedade maior
o prestígio em nossa governança do “cidadão”. Infelizmente, pela minha
experiência de vida, digo que vejo algo semelhante em nossa iniciativa privada.
Parece que a competência, a ética e a eficiência de nossas ações são meros
detalhes, o que mata a nossa vivência social. Para melhorarmos, temos de ter
autocrítica. Vivenciamos cenas lamentáveis em nosso cotidiano por não tratarmos
os nossos problemas com seriedade. Tenhamos autocrítica: nosso país não é nem
um pouco sério por não sermos sérios como sociedade. Ouvir em exercer a
autoridade de um cara que mal bate os 5% de popularidade é uma vergonha. Quem
ele pensa que é para falar em autoridade? Se bem que, na minha humilde análise
semiótica, era visível na cara de Michel Temer no pronunciamento que ele estava
não só inseguro, mas, principalmente, deixou transparecer a certeza de que não
é capaz de lidar com o caos. Não é como depois das denúncias do Joesley, em que
ele se mostrou convicto e forte. Agora ele estava desnorteado. Afinal, se
defender da corrupção negociando com o Congresso para ele é normal, agora governar
por meio da negociação de acordo com os interesses do país lhe parece ser tão
difícil quanto uma cobra voar.
Acabaram de
colocar nos jornais que haverá uma ação militar para acabar o movimento. Como?
O estado não tem aparato para agir sobre essa quantidade de pessoas em todo o
Brasil. É capaz de eles não terem nem combustível para agir. Do jeito que as
coisas acontecem no Brasil, é bem capaz de os militares só terem gasolina para
a ida e não darem conta de voltarem para a base. Como eles acham que vão tirar
milhares de caminhões das nossas estradas? Onde eles vão colocar tantos
possíveis presos? Qualquer agente da ABIN (digníssimos alunos, prestem atenção,
pois esse tipo de agente se escreve junto!) falaria cheio de razão: “alto lá!
Isso vai dar merda!”. A ação violenta
não será capaz de acabar ou mudar algo que não a teme pela prova empírica da
força do movimento insurgente.
No que vai
dar? Veremos. Do jeito que a coisa anda, é capaz de este texto estar absolutamente
desatualizado daqui a algumas horas.
(Escrito por Fernando Fidelix Nunes)
Ótimo texto. Só pra constar, a greve de 87 e logo depois o badernaço , no mesmo ano, tiveram consequências semelhantes às da greve dos caminhoneiros . Valeu .
ResponderExcluirA gasolina do DF não chega de caminhão de outros estados; é distribuída a partir de depósitos no SIA. Em greves anteriores não faltou combustíveis nos postos porque, legalmente, o governo poderia, com facilidade desobstruir a passagem dos caminhões tanques já na quarta feira. Somente no sábado o GDF teve a iniciativa de desobstruir. Esse governo do DF é incompetente e maldoso.
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