sexta-feira, 25 de maio de 2018

As Intermitências do Brasil


As Intermitências do Brasil

               

A cada semana que se passa eu me sinto cada vez mais imerso em uma conjuntura social inimaginável até mesmo para gênios da literatura especialistas em criar realidades caóticas, como José Saramago. Para quem não conhece a obra desse escritor português e não entendeu direito, eu vou fazer uma síntese explicativa bem acessível. Nos enredos do Saramago, é bastante comum acontecerem coisas chocantes para a humanidade: as pessoas terem uma cegueira branca cuja causa é desconhecida, votarem apenas em branco nas eleições e até pararem de morrer. Um conhecido meu do centro espírita que eu frequento me deu informações fidedignas de que ele está nos observando do outro mundo lamentando não ter sido capaz de produzir em vida um enredo tão complexo quanto a história recente do Brasil. Além disso, ele afirmou que se diz decepcionado com a mediocridade dos nossos artistas frente a este momento periclitante.

Andando pelas ruas de Brasília nesta semana tive, assim como milhões de brasileiros, a certeza de que assistia à materialização de um momento histórico, daqueles que veremos futuramente em documentários, filmes, artigos acadêmicos e livros didáticos em formato digital. Filas quilométricas para abastecer em postos de gasolina e as ruas, aos poucos, se tornando cada vez mais ermas. Isso ainda é tranquilo se compararmos com as possibilidades que se avizinham: “intervenção” militar, desabastecimento crônico, confrontos nas ruas, mortes desnecessárias, surtos políticos e o que mais a imaginação for capaz de conceber como trágico. Enfim, estamos de pernas para o ar como a casa de um solteirão depois de um mês sem faxina.

Num primeiro momento, uma parte considerável dos brasileiros, seguindo nossa tradição, faz piadas nas redes sociais. Um professor que eu conheço chegou até a postar em sua página no Facebook que “não são todos os alunos que estão felizes em não terem aula nesta sexta-feira, só os normais” – uma paráfrase igualmente canalha de uma frase de Nelson Rodrigues. Entretanto, a calamidade da situação nos leva, pouco a pouco a olhar com mais seriedade e prudência o caos iminente que nos aguarda. Nos meus quase trinta anos de vida, o que é uma estrada razoável, nunca vivi uma conjuntura tão complexa e acho que não viverei para ver cinco anos tão conturbados e incompreensíveis quanto os últimos, capazes de trucidar a credibilidade de praticamente todas as nossas instituições.

A ação dos caminhoneiros não parece ser um movimento político consciente baseado em ponderações aristotélicas e amplas. É a materialização do desespero da crise que os puxou para a beira do colapso do subdesenvolvimento, essência do nosso país desde a colonização. Se fosse algo pensado para ser assim, não conseguiria ter o mesmo efeito e, principalmente, a mesma pujança. No Brasil é assim: nós pensamos que é um plano arquitetado nos mínimos detalhes por manipuladores dos fatos, quando na maioria das vezes as coisas caminham de um jeito estranho e sem uma justificativa plausível mesmo. Mas, como os fatos ainda não foram desvelados, tem uma probabilidade considerável de eu estar errado. Contudo, desconfio que tenho razão.

Parece que não há qualquer interlocução direta. As lideranças de movimentos trabalhadores, que foram se desmoralizando de forma brutal nesta década, negociaram com o Palácio do Planalto e aceitaram, em sua maioria, um acordo capaz de reduzir o preço dos combustíveis. O problema é que isso não surtiu quase nenhum efeito no movimento. Os caminhoneiros continuam indignados e querem mandar o governo pastar se não sentirem uma mudança significativa no preço dos combustíveis.

Nessa conjuntura complexa e quase sem fim, vemos nas redes sociais verdadeiros oportunistas dando soluções. Alguns medíocres especialistas em dizer apenas o que os outros querem ouvir chegaram a afirmar que fizeram a sua parte e que as coisas seriam resolvidas com algumas soluções simples. A cultura popular às vezes é o melhor caminho para desmascarar esse tipo de gente: “falar é fácil, difícil é fazer”. E é por aí. Tem gente que faz parecer fácil acabar com os graves problemas da nossa sociedade, mas que no duro não conhecem o país tupiniquim em que sobrevivem milhões de brasileiros. Mãos invisíveis e várias intervenções antidemocráticas são panaceias tão utópicas e fantasiosas quanto a história de três porquinhos se defendendo de um lobo malvado e faminto.

Perdemos. Infelizmente, para o momento, essa é a constatação mais inevitável. Falhamos como grupo dia após dia. Deixamos um sistema absolutamente corrupto e incompetente se formar e se consolidar de modo fisiológico em nossa república. E, acreditem, se isso fosse só nos cargos representativos, estávamos numa situação menos caótica. Trabalhando no GDF há cinco anos, percebi como a administração pública costuma, com algumas exceções, seguir uma meritocracia de cabeça para baixo: quanto mais pilantra, picareta, personalista, dissimulado, incompetente, despreparado e menos projetos capazes de mudar a sociedade maior o prestígio em nossa governança do “cidadão”. Infelizmente, pela minha experiência de vida, digo que vejo algo semelhante em nossa iniciativa privada. Parece que a competência, a ética e a eficiência de nossas ações são meros detalhes, o que mata a nossa vivência social. Para melhorarmos, temos de ter autocrítica. Vivenciamos cenas lamentáveis em nosso cotidiano por não tratarmos os nossos problemas com seriedade. Tenhamos autocrítica: nosso país não é nem um pouco sério por não sermos sérios como sociedade. Ouvir em exercer a autoridade de um cara que mal bate os 5% de popularidade é uma vergonha. Quem ele pensa que é para falar em autoridade? Se bem que, na minha humilde análise semiótica, era visível na cara de Michel Temer no pronunciamento que ele estava não só inseguro, mas, principalmente, deixou transparecer a certeza de que não é capaz de lidar com o caos. Não é como depois das denúncias do Joesley, em que ele se mostrou convicto e forte. Agora ele estava desnorteado. Afinal, se defender da corrupção negociando com o Congresso para ele é normal, agora governar por meio da negociação de acordo com os interesses do país lhe parece ser tão difícil quanto uma cobra voar.

Acabaram de colocar nos jornais que haverá uma ação militar para acabar o movimento. Como? O estado não tem aparato para agir sobre essa quantidade de pessoas em todo o Brasil. É capaz de eles não terem nem combustível para agir. Do jeito que as coisas acontecem no Brasil, é bem capaz de os militares só terem gasolina para a ida e não darem conta de voltarem para a base. Como eles acham que vão tirar milhares de caminhões das nossas estradas? Onde eles vão colocar tantos possíveis presos? Qualquer agente da ABIN (digníssimos alunos, prestem atenção, pois esse tipo de agente se escreve junto!) falaria cheio de razão: “alto lá! Isso vai dar merda!”.  A ação violenta não será capaz de acabar ou mudar algo que não a teme pela prova empírica da força do movimento insurgente.

No que vai dar? Veremos. Do jeito que a coisa anda, é capaz de este texto estar absolutamente desatualizado daqui a algumas horas.


(Escrito por Fernando Fidelix Nunes)

2 comentários:

  1. Ótimo texto. Só pra constar, a greve de 87 e logo depois o badernaço , no mesmo ano, tiveram consequências semelhantes às da greve dos caminhoneiros . Valeu .

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  2. A gasolina do DF não chega de caminhão de outros estados; é distribuída a partir de depósitos no SIA. Em greves anteriores não faltou combustíveis nos postos porque, legalmente, o governo poderia, com facilidade desobstruir a passagem dos caminhões tanques já na quarta feira. Somente no sábado o GDF teve a iniciativa de desobstruir. Esse governo do DF é incompetente e maldoso.

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