(Ilustração de Jeferson Rafael Ortiz Fernandez)
Quer Ler a Sorte?
Há
pessoas que acreditam veementemente na necessidade de aguardar a produção de um
inequívoco estudo técnico, tal como os do IBGE, para se compreender
profundamente uma pessoa ou mesmo um país. Se os especialistas soubessem que a
análise de apenas uma historieta rotineira captada da varanda de casa ou do
celular consegue absorver os anseios fugazes e perenes de uma fração substancial
da população, abandonariam os números dos relatórios e seriam devotos da
irrefutável força da cultura peculiar de um povo. O público duvida? Faz bem!
Afinal, a dúvida criou o mundo. Entretanto, a ficção muitas vezes traz a
verossimilhança nua, crua e dissimulada escondida por trás dos números e dos
disfarces mais precisos e obsoletos. Bem... chega de papo e vamos ao que
interessa.
Após
um longo período de espera e muitas especulações sobre datas e prazos,
Reinaldo, finalmente, fora nomeado para o cargo de técnico judiciário no TJDFT.
Ao ler o seu nome escrito no Diário Oficial, disponível na internet na manhã de
uma terça-feira, o jovem de 25 anos não conseguiu conter a alegria. Soltou um
grito molhado por compulsivas lágrimas semelhante ao de um torcedor que vê seu
time, com três jogadores a menos, fazer o gol do título no último lance do jogo
contra o maior rival na casa do adversário, o que fez a vizinha de cima, no terceiro
andar, suspeitar ser uma crise psicológica incomum.
Sua família, a
começar pelo pai, o parabenizou bastante. Depois de acalorados cumprimentos e
telefonemas para os amigos e parentes mais próximos, todos falaram dos novos
rumos para a futura vida do jovem. As palavras estabilidade, tranquilidade,
planejamento e benefícios ditavam as previsões sobre o seu futuro e os seus
caminhos. Nenhum quebra-molas, nenhum buraco, nenhum empecilho nem sequer uma
única curva. Apenas uma linha reta sem deslizes em um asfalto perfeito e plano,
cenário ideal para um carro luxuoso de tanque cheio desfilar pela Capital da
Esperança.
Assim que
confirmou a novidade a todos em sua casa, Reinaldo ligou para Raquel, sua
namorada. Boa companheira que compartilhava as alegrias de seu amor, a moça
ficou em êxtase e, enquanto sorria bastante, elogiava seu namorado. Devido às
suas obrigações como nutricionista no Hospital Regional da Asa Norte, não pôde
falar por mais de 2 minutos.
– Amor, a
gente precisa comemorar! – disse Raquel com entusiasmo – você precisa curtir a
sua conquista.
– Lógico!
Olha... vou comemorar com meus pais na hora do almoço. Você pode vir com a
gente ou o pessoal do hospital vai te prender?
– Ixi, amor...
vou ter que pagar umas horas aqui bem nesse horário. Faz assim: passa aqui umas
sete e me pega, daí a gente sai pra algum lugar. Podemos ir naquele bar que o
Wesley comemorou o aniversário na 409.
– Ah, amor!
Queria você do meu lado – mesmo sem ver, ele tinha certeza de que a namorada
sorria devido àquelas palavras. Passo aí umas seis horas tá?
– Sete! Presta
atenção, Rei! – disse em tom de pilhéria. Amor, não posso falar muito. Vão
ficar enchendo meu saco aqui. Beijo! E comemore a sua conquista. Você merece!
– Beijão e até
mais, lindona.
– Beijão, meu
servidor!
– Beijão de
língua, razão do meu libido! – terminou o rapaz com uma referência que não foi
bem entendida pela namorada, que cumpria suas atribuições com o pensamento no
futuro do seu amado.
Após contar
para a pessoa mais importante do mundo para ele, publicou em 3 redes sociais, acompanhado
de um print da imagem da página em
que a sua nomeação estava, um curto texto, que tinha o objetivo de alcançar a
pujança de um canto genetlíaco dedicado ao serviço público, mas não passava de
um amontoado de lugares-comuns. Apesar de não ser uma postagem sublime baseada na
combinação adequada das modalidades semióticas, recebeu pouco mais de quatro
centenas de curtidas e muitas felicitações pelo seu feito tão suado.
Após a
publicidade de seu novo status, como não podia deixar de ser, Reinaldo divagou
sobre o futuro. Teve medo de se frustrar no serviço. Poucas coisas podem
atormentar mais a vida de uma pessoa quanto um ambiente de trabalho mesquinho.
Uma delas é trabalhar como um escravo num trabalho para o qual não se está
preparado ou realmente disposto. A possibilidade de os dois se unirem durante,
no mínimo, 30 ou 40 horas semanais causaram certa vertigem em nosso recente
nomeado. Contudo, Reinaldo vislumbrou, já mais tranquilo, a possibilidade de
cair num daqueles setores chamados de “tranquilos”, cuja presença ou ausência
não se faz sentir pela chefia imediata nem pela sociedade, a não ser pelos
impostos.
No almoço com
o pai e a mãe, aposentados após algumas décadas de serviços prestados ao antigo
Ministério da Fazenda, jogou suas angústias na mesa. Eles responderam com uma
tranquilidade didática.
– E se eu não
gostar do trabalho?
– Pode passar
em outro concurso de outra instituição pública – disse o pai.
– E se o
ambiente de trabalho for ruim?
– É possível
mudar de setor com facilidade, meu filho – respondeu a mãe com calma.
– E se não souber
nada do trabalho?
– Aprende-se
com a prática – refutou o pai com um riso de quem explica algo a uma criança.
– E se eu
tiver a ideia de abrir um negócio meu? – em verdade, jamais pensara nessa
possibilidade.
– Pede licença
depois de três anos e espera para ver se vale a pena largar o serviço público e
depois pode até dar um jeito de conciliar os dois – respondeu o pai com
contundência.
– E se eu
precisar de mais dinheiro?
– Só passar em
outro concurso. Afinal, existem vários todos os anos e os da Câmara e do Senado
estão sempre aí. E depois do primeiro, fica muito mais fácil passar, meu filho
– a mãe replicou com racionalidade.
O camarão
preferido de Reinaldo não foi tão apreciado quanto a refutação inquestionável
de seus pais. Reinaldo parecia uma criança cujos medos do primeiro dia de aula
lhe deixavam de ser uma angústia para se tornar uma esperança de novos rumos
para sua vida.
***
Já
em seu quarto e desconectado do mundo virtual, o jovem, com os olhos perdidos
na fração do azul do céu da Capital da Esperança que sua janela lhe oferecia na
314 norte, se deixava levar por lembranças soltas de sua vida que o levaram até
aquele momento. Lembrava-se dos dois anos que passara estudando para diversos
concursos públicos. No início não era muito dedicado, já que trocava com
facilidade a sala de aula dos cursinhos pela mesa de um bar na companhia de
alguns amigos. Entretanto, como tudo na vida, o gosto da cerveja, das piadas e
das pizzas da madrugada começou a não satisfazer mais o seu espírito. Ademais,
a aprovação de Raquel no concurso da Secretaria de Saúde do Distrito Federal fornecia-lhe
um empurrão em suas ambições profissionais e pessoais. Ficar para trás não se é
uma opção para um homem realmente apaixonado, pensava o jovem. Perder o
respeito ou a admiração da amada era o que mais o angustiava. Era capaz de
sobreviver a qualquer perda, menos a perda da namorada. De fato, Reinaldo era
desses homens que preferiam perder a dignidade e até a liberdade, do que o amor
da mulher amada.
Passou
a largar os copos das mesas de bar e passou a sentar em cadeiras de cursinhos e
a gastar as canetas de todas as cores para estudar mais. Formado em Geografia
pela UnB, estava acostumado a ler no dia a dia para passar nas matérias. Mas os
concursos que fazia exigiam, obviamente, mais do que um malandro MM. Era
preciso se dedicar mais, mais e mais a cada dia. A um mês da prova chegou a
estudar dez horas por dia, arrumando tempo apenas para mandar uma mensagem para
a sua amada. “Foco, força e fé”, “Foco é sucesso”, “O que seu concorrente está
fazendo agora?”, “O sacrifício vale a pena, pois a dor é temporária e emprego é
pra sempre!”, “Zona de conforto é a aprovação”, “Viva o que os outros sonham
viver” e “Lembre-se sempre do que te trouxe até aqui” eram frases recorrentes
na sua transitória rotina de dedicação aos estudos.
Na
semana da prova, descansou e assistiu a filmes e seriados com Raquel, sua
principal motivação. Ele não declarava abertamente a importância da sua amada
em sua dedicação, pois temia apresentar-se de forma dependente e subjugada, o
que, na sua cabeça, significaria perder valor para sua adorável namorada. De
certa forma, ela entendia muito bem a situação, mas também não gostava de tocar
no assunto para si mesma, muito menos para o seu amado.
No
dia da prova, Reinaldo fez uma breve revisão nos principais conteúdos dos
direitos e viu um esquema de redações para concursos disponibilizado de forma
exclusiva pelo seu cursinho na véspera da prova. A prova correu muito bem, o
tema da redação “A importância da ética no serviço público brasileiro no século
XXI” com a exigência de citar ao menos 2 leis exigidas pelo edital foi feita de
maneira muito simples e objetiva, como postulado pelas dicas do cursinho. O
restante da prova, organizada pelo CESPE, era bastante capciosa, já que havia
peguinhas de toda natureza, mas que haviam sido desvendados a Reinaldo pelo
cursinho. Acabara a prova 30 minutos antes do término, mas lamentou
profundamente ter marcado o item 94 como correto, já que o item era obviamente
errado. Teve, portanto, de marcar os dois gabaritos. Nesse instante deu um leve
soco na mesa para externar, dentro dos padrões de uma sala de provas, a sua
indignação consigo mesmo. 15 minutos depois, foi autorizado a sair com o
caderno de provas.
Na
quarta-feira subsequente, à medida que ia corrigindo a prova de acordo com o
gabarito oficial junto com a família, a esperança de um futuro brilhante se
desenhava de forma clara. O resultado final do concurso coroou o seu empenho e
o fez ficar à espera da homologação e da nomeação, que veio 1 ano após a prova.
***
Às
sete horas da noite, pontualmente, Reinaldo pegou a namorada em frente ao HRAN.
Raquel abraçou-o com paixão e deu-lhe todo carinho de forma efusiva e
apaixonada. Resolveram comemorar a dois no bar. Reinaldo pensou até em chamar
uns 3 amigos que moravam perto do bar, mas Raquel insistiu para que eles aproveitassem
esse momento de conquista a sós.
Entre
beijos e desejos ardentes, o casal foi animado pedindo os serviços do bar:
porções, cervejas e caipirinhas. Enquanto começavam a segunda porção de carne de
sol, chegou uma senhora com pouco mais de um metro e meio perguntando em tom de
publicidade:
–
Quer ler a sorte?
Antes
que Reinaldo desse o seu recorrente não ao que ele considerava perda de tempo e
de dinheiro, Raquel disse efusivamente:
–
Quero! Você adivinha o futuro?
–
Claro! – respondeu a cartomante que já emendou. Você quer quantas cartas?
–
Quanto é? – perguntou Reinaldo em tom de impaciência.
–
É feio perguntar essas coisas – reprimiu-o a namorada – dá azar perguntar essas
coisas. Vire quantas forem necessárias para sabermos nosso futuro.
A
cartomante sentou e foi virando uma carta atrás da outra. Enquanto Reinaldo
terminava sua caipirinha com cara de tédio, Raquel ia sendo tomada pelo
entusiasmo mágico que a situação lhe causara. As cartas eram uníssonas: ambos
viveriam um amor ardente e profundo que geraria filhos que passariam, devido à
força do amor e à solidez financeira do casal, imunes aos desafios da vida,
assim como os pais. Por fim, destacou apenas que o terceiro filho, cujo nome
seria uma homenagem a uma pessoa célebre, seria um pouco mais agitado que os
antecessores.
–
Nossa! Top demais! – Raquel exaltava a simples cartomante como se exalta a uma
estrela do sertanejo universitário de nossos tempos.
–
Só revelei a verdade.
Enquanto
Reinaldo olhava de forma desconfiada para a cena, a cartomante esboçava um leve
sorriso que mostrava antes a espera por alguma retribuição do que qualquer
outra premonição.
–
Então, as cartas foram lidas...
–
Muito obrigada! Qual é o seu nome, senhora?
–
Inês de Castro.
–
Quanto eu lhe devo, Inês?
–
Quanto o seu coração mandar – falou com a simplicidade de quem sabe o poder
aquisitivo de uma cliente em êxtase.
–
100 reais está bom pra você? – disse Raquel enquanto entregava a nota retirada
do bolso.
–
Se é o que seu coração manda, tá ótimo – disse a cartomante que se despediu com uma
reverência leve com a cabeça.
Depois
que a cartomante se dirigiu para um outro casal no mesmo bar, Reinaldo não
conseguiu esconder mais a indignação com as palavras o que já mostrava na cara.
–
Tu tá doida, Raquel? 100 reais para uma farsante dessas? Isso dá mais da metade
da conta só para uma mulher que falou duas coisinhas que qualquer um poderia
falar para agradar – esbravejou contendo a força da voz para que sua indignação
não passasse dos limites da sua irritação com a cena.
–
Amor, deixa de ser murrinha! Não quero saber de briga hoje não, estamos aqui
pra comemorar e você vem com isso. O dinheiro já foi e agora a gente tem muito
trabalho pra beber e comer todo resto antes de ir – com um beijo, finalizou a
nutricionista que sabia como esfriar os ímpetos de seu amado em poucos
instantes. Ela ainda pensou em questionar o namorado se alguma coisa dita pela
cartomante lhe desagradara, mas viu que só ia ter dores de cabeça com isso e
deixou de lado.
Fecharam
a conta. Reinaldo fez questão de pagar tudo. Afinal, segundo ele, agora ele
podia fazer alguns exageros sem se preocupar tanto com o futuro.
No
carro, enquanto pegavam o Eixão na altura da 7 norte, começou a tocar Always,
do Bom Jovi, em um desses programas de músicas antigas. Entre alguns olhares e
beijos ardentes, ambos cantarolavam a música apaixonadamente. Até que, no final
do primeiro refrão, entraram no Buraco do Tatu, de onde saíram mortos após uma
trágica colisão frontal com uma caminhonete para fretes de pequeno porte.
(Fernando Fidelix Nunes)