sábado, 1 de fevereiro de 2020

Conto "Quer Ler a Sorte?"


(Ilustração de Jeferson Rafael Ortiz Fernandez)

Quer Ler a Sorte?


Há pessoas que acreditam veementemente na necessidade de aguardar a produção de um inequívoco estudo técnico, tal como os do IBGE, para se compreender profundamente uma pessoa ou mesmo um país. Se os especialistas soubessem que a análise de apenas uma historieta rotineira captada da varanda de casa ou do celular consegue absorver os anseios fugazes e perenes de uma fração substancial da população, abandonariam os números dos relatórios e seriam devotos da irrefutável força da cultura peculiar de um povo. O público duvida? Faz bem! Afinal, a dúvida criou o mundo. Entretanto, a ficção muitas vezes traz a verossimilhança nua, crua e dissimulada escondida por trás dos números e dos disfarces mais precisos e obsoletos. Bem... chega de papo e vamos ao que interessa.

Após um longo período de espera e muitas especulações sobre datas e prazos, Reinaldo, finalmente, fora nomeado para o cargo de técnico judiciário no TJDFT. Ao ler o seu nome escrito no Diário Oficial, disponível na internet na manhã de uma terça-feira, o jovem de 25 anos não conseguiu conter a alegria. Soltou um grito molhado por compulsivas lágrimas semelhante ao de um torcedor que vê seu time, com três jogadores a menos, fazer o gol do título no último lance do jogo contra o maior rival na casa do adversário, o que fez a vizinha de cima, no terceiro andar, suspeitar ser uma crise psicológica incomum.

Sua família, a começar pelo pai, o parabenizou bastante. Depois de acalorados cumprimentos e telefonemas para os amigos e parentes mais próximos, todos falaram dos novos rumos para a futura vida do jovem. As palavras estabilidade, tranquilidade, planejamento e benefícios ditavam as previsões sobre o seu futuro e os seus caminhos. Nenhum quebra-molas, nenhum buraco, nenhum empecilho nem sequer uma única curva. Apenas uma linha reta sem deslizes em um asfalto perfeito e plano, cenário ideal para um carro luxuoso de tanque cheio desfilar pela Capital da Esperança.

Assim que confirmou a novidade a todos em sua casa, Reinaldo ligou para Raquel, sua namorada. Boa companheira que compartilhava as alegrias de seu amor, a moça ficou em êxtase e, enquanto sorria bastante, elogiava seu namorado. Devido às suas obrigações como nutricionista no Hospital Regional da Asa Norte, não pôde falar por mais de 2 minutos.

– Amor, a gente precisa comemorar! – disse Raquel com entusiasmo – você precisa curtir a sua conquista.

– Lógico! Olha... vou comemorar com meus pais na hora do almoço. Você pode vir com a gente ou o pessoal do hospital vai te prender?

– Ixi, amor... vou ter que pagar umas horas aqui bem nesse horário. Faz assim: passa aqui umas sete e me pega, daí a gente sai pra algum lugar. Podemos ir naquele bar que o Wesley comemorou o aniversário na 409.

– Ah, amor! Queria você do meu lado – mesmo sem ver, ele tinha certeza de que a namorada sorria devido àquelas palavras. Passo aí umas seis horas tá?

– Sete! Presta atenção, Rei! – disse em tom de pilhéria. Amor, não posso falar muito. Vão ficar enchendo meu saco aqui. Beijo! E comemore a sua conquista. Você merece!

– Beijão e até mais, lindona.

– Beijão, meu servidor!

– Beijão de língua, razão do meu libido! – terminou o rapaz com uma referência que não foi bem entendida pela namorada, que cumpria suas atribuições com o pensamento no futuro do seu amado.

Após contar para a pessoa mais importante do mundo para ele, publicou em 3 redes sociais, acompanhado de um print da imagem da página em que a sua nomeação estava, um curto texto, que tinha o objetivo de alcançar a pujança de um canto genetlíaco dedicado ao serviço público, mas não passava de um amontoado de lugares-comuns. Apesar de não ser uma postagem sublime baseada na combinação adequada das modalidades semióticas, recebeu pouco mais de quatro centenas de curtidas e muitas felicitações pelo seu feito tão suado.

Após a publicidade de seu novo status, como não podia deixar de ser, Reinaldo divagou sobre o futuro. Teve medo de se frustrar no serviço. Poucas coisas podem atormentar mais a vida de uma pessoa quanto um ambiente de trabalho mesquinho. Uma delas é trabalhar como um escravo num trabalho para o qual não se está preparado ou realmente disposto. A possibilidade de os dois se unirem durante, no mínimo, 30 ou 40 horas semanais causaram certa vertigem em nosso recente nomeado. Contudo, Reinaldo vislumbrou, já mais tranquilo, a possibilidade de cair num daqueles setores chamados de “tranquilos”, cuja presença ou ausência não se faz sentir pela chefia imediata nem pela sociedade, a não ser pelos impostos.

No almoço com o pai e a mãe, aposentados após algumas décadas de serviços prestados ao antigo Ministério da Fazenda, jogou suas angústias na mesa. Eles responderam com uma tranquilidade didática.

– E se eu não gostar do trabalho?

– Pode passar em outro concurso de outra instituição pública – disse o pai.

– E se o ambiente de trabalho for ruim?

– É possível mudar de setor com facilidade, meu filho – respondeu a mãe com calma.

– E se não souber nada do trabalho?

– Aprende-se com a prática – refutou o pai com um riso de quem explica algo a uma criança.

– E se eu tiver a ideia de abrir um negócio meu? – em verdade, jamais pensara nessa possibilidade.

– Pede licença depois de três anos e espera para ver se vale a pena largar o serviço público e depois pode até dar um jeito de conciliar os dois – respondeu o pai com contundência.

– E se eu precisar de mais dinheiro?

– Só passar em outro concurso. Afinal, existem vários todos os anos e os da Câmara e do Senado estão sempre aí. E depois do primeiro, fica muito mais fácil passar, meu filho – a mãe replicou com racionalidade.

O camarão preferido de Reinaldo não foi tão apreciado quanto a refutação inquestionável de seus pais. Reinaldo parecia uma criança cujos medos do primeiro dia de aula lhe deixavam de ser uma angústia para se tornar uma esperança de novos rumos para sua vida.

***

Já em seu quarto e desconectado do mundo virtual, o jovem, com os olhos perdidos na fração do azul do céu da Capital da Esperança que sua janela lhe oferecia na 314 norte, se deixava levar por lembranças soltas de sua vida que o levaram até aquele momento. Lembrava-se dos dois anos que passara estudando para diversos concursos públicos. No início não era muito dedicado, já que trocava com facilidade a sala de aula dos cursinhos pela mesa de um bar na companhia de alguns amigos. Entretanto, como tudo na vida, o gosto da cerveja, das piadas e das pizzas da madrugada começou a não satisfazer mais o seu espírito. Ademais, a aprovação de Raquel no concurso da Secretaria de Saúde do Distrito Federal fornecia-lhe um empurrão em suas ambições profissionais e pessoais. Ficar para trás não se é uma opção para um homem realmente apaixonado, pensava o jovem. Perder o respeito ou a admiração da amada era o que mais o angustiava. Era capaz de sobreviver a qualquer perda, menos a perda da namorada. De fato, Reinaldo era desses homens que preferiam perder a dignidade e até a liberdade, do que o amor da mulher amada.

Passou a largar os copos das mesas de bar e passou a sentar em cadeiras de cursinhos e a gastar as canetas de todas as cores para estudar mais. Formado em Geografia pela UnB, estava acostumado a ler no dia a dia para passar nas matérias. Mas os concursos que fazia exigiam, obviamente, mais do que um malandro MM. Era preciso se dedicar mais, mais e mais a cada dia. A um mês da prova chegou a estudar dez horas por dia, arrumando tempo apenas para mandar uma mensagem para a sua amada. “Foco, força e fé”, “Foco é sucesso”, “O que seu concorrente está fazendo agora?”, “O sacrifício vale a pena, pois a dor é temporária e emprego é pra sempre!”, “Zona de conforto é a aprovação”, “Viva o que os outros sonham viver” e “Lembre-se sempre do que te trouxe até aqui” eram frases recorrentes na sua transitória rotina de dedicação aos estudos.

Na semana da prova, descansou e assistiu a filmes e seriados com Raquel, sua principal motivação. Ele não declarava abertamente a importância da sua amada em sua dedicação, pois temia apresentar-se de forma dependente e subjugada, o que, na sua cabeça, significaria perder valor para sua adorável namorada. De certa forma, ela entendia muito bem a situação, mas também não gostava de tocar no assunto para si mesma, muito menos para o seu amado.

No dia da prova, Reinaldo fez uma breve revisão nos principais conteúdos dos direitos e viu um esquema de redações para concursos disponibilizado de forma exclusiva pelo seu cursinho na véspera da prova. A prova correu muito bem, o tema da redação “A importância da ética no serviço público brasileiro no século XXI” com a exigência de citar ao menos 2 leis exigidas pelo edital foi feita de maneira muito simples e objetiva, como postulado pelas dicas do cursinho. O restante da prova, organizada pelo CESPE, era bastante capciosa, já que havia peguinhas de toda natureza, mas que haviam sido desvendados a Reinaldo pelo cursinho. Acabara a prova 30 minutos antes do término, mas lamentou profundamente ter marcado o item 94 como correto, já que o item era obviamente errado. Teve, portanto, de marcar os dois gabaritos. Nesse instante deu um leve soco na mesa para externar, dentro dos padrões de uma sala de provas, a sua indignação consigo mesmo. 15 minutos depois, foi autorizado a sair com o caderno de provas.

Na quarta-feira subsequente, à medida que ia corrigindo a prova de acordo com o gabarito oficial junto com a família, a esperança de um futuro brilhante se desenhava de forma clara. O resultado final do concurso coroou o seu empenho e o fez ficar à espera da homologação e da nomeação, que veio 1 ano após a prova.

***

Às sete horas da noite, pontualmente, Reinaldo pegou a namorada em frente ao HRAN. Raquel abraçou-o com paixão e deu-lhe todo carinho de forma efusiva e apaixonada. Resolveram comemorar a dois no bar. Reinaldo pensou até em chamar uns 3 amigos que moravam perto do bar, mas Raquel insistiu para que eles aproveitassem esse momento de conquista a sós.

Entre beijos e desejos ardentes, o casal foi animado pedindo os serviços do bar: porções, cervejas e caipirinhas. Enquanto começavam a segunda porção de carne de sol, chegou uma senhora com pouco mais de um metro e meio perguntando em tom de publicidade:

– Quer ler a sorte?

Antes que Reinaldo desse o seu recorrente não ao que ele considerava perda de tempo e de dinheiro, Raquel disse efusivamente:

– Quero! Você adivinha o futuro?

– Claro! – respondeu a cartomante que já emendou. Você quer quantas cartas?

– Quanto é? – perguntou Reinaldo em tom de impaciência.

– É feio perguntar essas coisas – reprimiu-o a namorada – dá azar perguntar essas coisas. Vire quantas forem necessárias para sabermos nosso futuro.

A cartomante sentou e foi virando uma carta atrás da outra. Enquanto Reinaldo terminava sua caipirinha com cara de tédio, Raquel ia sendo tomada pelo entusiasmo mágico que a situação lhe causara. As cartas eram uníssonas: ambos viveriam um amor ardente e profundo que geraria filhos que passariam, devido à força do amor e à solidez financeira do casal, imunes aos desafios da vida, assim como os pais. Por fim, destacou apenas que o terceiro filho, cujo nome seria uma homenagem a uma pessoa célebre, seria um pouco mais agitado que os antecessores.

– Nossa! Top demais! – Raquel exaltava a simples cartomante como se exalta a uma estrela do sertanejo universitário de nossos tempos.

– Só revelei a verdade.

Enquanto Reinaldo olhava de forma desconfiada para a cena, a cartomante esboçava um leve sorriso que mostrava antes a espera por alguma retribuição do que qualquer outra premonição.

– Então, as cartas foram lidas...

– Muito obrigada! Qual é o seu nome, senhora?

– Inês de Castro.

– Quanto eu lhe devo, Inês?

– Quanto o seu coração mandar – falou com a simplicidade de quem sabe o poder aquisitivo de uma cliente em êxtase.

– 100 reais está bom pra você? – disse Raquel enquanto entregava a nota retirada do bolso.

– Se é o que seu coração manda, tá ótimo – disse a cartomante que se despediu com uma reverência leve com a cabeça.

Depois que a cartomante se dirigiu para um outro casal no mesmo bar, Reinaldo não conseguiu esconder mais a indignação com as palavras o que já mostrava na cara.

– Tu tá doida, Raquel? 100 reais para uma farsante dessas? Isso dá mais da metade da conta só para uma mulher que falou duas coisinhas que qualquer um poderia falar para agradar – esbravejou contendo a força da voz para que sua indignação não passasse dos limites da sua irritação com a cena.

– Amor, deixa de ser murrinha! Não quero saber de briga hoje não, estamos aqui pra comemorar e você vem com isso. O dinheiro já foi e agora a gente tem muito trabalho pra beber e comer todo resto antes de ir – com um beijo, finalizou a nutricionista que sabia como esfriar os ímpetos de seu amado em poucos instantes. Ela ainda pensou em questionar o namorado se alguma coisa dita pela cartomante lhe desagradara, mas viu que só ia ter dores de cabeça com isso e deixou de lado.

Fecharam a conta. Reinaldo fez questão de pagar tudo. Afinal, segundo ele, agora ele podia fazer alguns exageros sem se preocupar tanto com o futuro.

No carro, enquanto pegavam o Eixão na altura da 7 norte, começou a tocar Always, do Bom Jovi, em um desses programas de músicas antigas. Entre alguns olhares e beijos ardentes, ambos cantarolavam a música apaixonadamente. Até que, no final do primeiro refrão, entraram no Buraco do Tatu, de onde saíram mortos após uma trágica colisão frontal com uma caminhonete para fretes de pequeno porte.


(Fernando Fidelix Nunes)