Começaremos a publicar contos!
Eu (Fernando) vou começar com um conto que não é meu nem do Renato. Esse conto foi feito por uma pessoa muito próxima a mim que quis ser chamado de João Aleixo.
Apreciem um pouco de regionalismo!
UM DIA A CASA CAI
Sargento Raimundo telefonou ao Cícero:
– O bicho está pegando! O Capitão quer falar comigo
amanhã; na primeira hora do expediente. Vamos agora ao Jatobá. Lá
conversaremos melhor.
Montou na moto e partiu ao sítio Jatobá, situado à
margem direita do rio Pajeú, município de São José do Egito, porém bem
próximo de Tuparetama.
Raimundo comprou o sítio há seis anos. Tinha especial
apego à região, ali nasceu e morou até a adolescência. Furou poços, plantou
frutíferas e cercou bem a propriedade. A safra de caju está iniciando e os pés
de manga espada estão carregados de frutos verdes. Abriu a porteira, avistou um
caju maduro ao alcance das mãos e foi coletá-lo. Olhou em direção ao centenário
mulungu. A presença do mulungu pesou na decisão de comprar o terreno. Quando
foi ver a terra para comprá-la, avistou xexéus-de-bananeira se alimentando do
néctar das flores do mulungu. Tinha grande admiração pela ave e, quando
menino, se sentia frustrado por nunca tê-la capturado. Faz plano que, após a
aposentadoria, deixará as atividades ilegais e trabalhará apenas no sítio.
Quando estava chupando o caju, Cícero apontou e Raimundo falou:
–Tenho boas razões para pensar que o
Capitão quer falar comigo sobre a agiotagem que pratico no quartel e na cidade.
Posso até afirmar que o agiota é você, eu apenas indico, porém ele não vai
acreditar. Ninguém pode provar, mas todo mundo desconfia que você seja apenas
meu testa de ferro. Segundo informações, os precedentes dele não são
animadores; quando serviu em Custódia, um dia, reuniu toda tropa e disse que
quem estava devendo a um Cabo dinheiro de agiotagem não deveria pagar e
qualquer reclamação poderia provocar expulsão do criminoso da PM e a abertura
de processo para colocá-lo na cadeia.
Cícero responde:
– Está comigo a planilha com a contabilidade dos
empréstimos; se é assim o procedimento do Capitão Olavo, o prejuízo será
grande. Pior seria se ele desconfiasse do tráfico de drogas.
Raimundo:
– O tempo é muito curto para pensar em assassiná-lo.
Matar um Capitão da PM não é como eliminar um pé rapado, mas a hipótese
não pode ser descartada.
Raimundo lembrou-se do caso de Zé Aragão, rico
fazendeiro: ele não queria pagar um dinheiro emprestado e Raimundo entendeu que
seria mais fácil receber da viúva. O caloteiro e uma amante casada tiveram
mortes consumadas na saída de um motel. Raimundo, deliberadamente, comandou a
equipe policial que fez a ocorrência do fato. O sucesso do plano se completou quando
familiares do morto mataram o marido da amante e a viúva reconheceu o cheque e
quitou a dívida.
Depois que a quadrilha de Raimundo entrou no ramo de
tráfico de cocaína, assassinatos de consumidores falidos e
traficantes aliciados pela quadrilha, que por vários motivos são
condenados à morte. São corriqueiros esses homicídios em São José do
Egito. Recrutar mão de obra nova ao tráfico de drogas e à pistolagem é muito
fácil.
Um popular que gosta de acompanhar notícias
policiais contou 10 homicídios de janeiro a outubro desse ano com as
mesmas características: os assassinos são sempre uma dupla encapuzada
montada em moto, as vítimas são atingidas por muitos tiros, as armas
usadas são de grossos calibres, a polícia nunca chega no momento oportuno e nenhum
desses homicídios foi esclarecido. A mais impressionante dessas mortes foi a do
jovem de 17 anos abatido com 21 balas de pistola calibre 380 dentro de sua
própria casa e na presença de familiares. A polícia espalha que é briga de
gangs. O popular acha improvável bandidos pés de chinelo donos de armas
poderosas e exímios atiradores. Desconfia que os matadores sejam policiais,
porém, com medo, não comenta essa possibilidade. Ele tem notícias que em muitas
cidades do Sertão nordestino existem quadrilhas compostas de policiais e
ex-policiais e que apenas eles podem traficar drogas e roubar. Surgindo
concorrência de algum paisano, este será morto. A justiça é conivente e o clero
omisso. A situação é semelhante a certo trecho do “Sermão do Bom Ladrão” do padre
Antônio Vieira, escrito em 1655: “De um,
chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Seronato
está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não
era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para
roubar ele só”. Padres deveriam recitar sempre nas missas este sermão,
porém assim como os juízes, têm medo.
Ninguém desconfia de que esses homicídios tenham
relação com Sargento Raimundo, embora os crimes aconteçam sempre em seus plantões
noturnos. A quadrilha é organizada em níveis, apenas Cícero sabe que Raimundo é
o chefe.
Raimundo entrou na PM aos 20 anos de idade. Logo pegou
fama de corajoso e decidido. Quando um Juiz resolveu intervir no presídio de
Caruaru após uma guerra sangrenta entre presos, Raimundo foi convidado à
missão. O tenente PM interventor escalou Raimundo para ser o Chefe de
Disciplina, dando-lhe carta branca visando o fim do controle do presídio
por reclusos. A pedido de Raimundo foi construída uma cela especial para
torturar presos e que tinha como única entrada e saída o escritório da Chefia
de Disciplina. A tortura era sempre uma surra; Raimundo e outro soldado
mandavam o preso ficar apenas de cueca e de surpresa recebia um açoite nas
costas produzido por uma vara de cerne de pau-d’arco-amarelo de 80 cm
de comprimento e 2 cm de diâmetro. A primeira pancada, dada no lombo, era tão
forte e doída que esmorecia qualquer ser humano e a surra só
terminava quando o preso desmaiava. Essa vara ganhou o apelido de
“direitos humanos”. Bastava um preso reivindicar esses direitos para que a vara
fosse chamada. Foi um sucesso a intervenção, apelidaram o presídio de
“convento” e os presos chamados de “freiras”, tal a paz reinante.
Todos presos novos eram recebidos com esse espancamento, com exceção
daqueles que chegavam recomendados por alguma autoridade. Os
encarcerados sem recursos eram os que mais apanhavam. Se livre o pobre sofre,
dentro da cadeia é muito pior. Com o passar do tempo, Raimundo enxergou a
oportunidade de ganhar dinheiro no presídio, rotineiramente com pequenos
empréstimos a juros e venda de mercadorias a presos e se aparecesse uma
oportunidade praticava extorsão. Também era usual o assédio sexual feito por
toda tropa a mulheres parentes de presos. Um bárbaro assassinato de uma
adolescente, filha de preso, praticado por um carcereiro rejeitado por ela,
desencadeou a volta de toda equipe ao quartel da PM. Confirmou-se: corno
brabo é um desastre na certa. Mesmo não trabalhando mais na penitenciária,
Raimundo perdeu pouco dinheiro nessa mudança; a cobrança era truculenta aos
parentes dos presos devedores.
Raimundo ordena:
– Coloque um motoqueiro para vigiar o Capitão e sua
família a partir hoje. Claro que não teremos informações para reverter minha
posição momentaneamente, mas a guerra será longa e ele ganhará apenas
essa primeira batalha. A autoconfiança de Raimundo não é mera ilusão; ela
se sustenta numa logística perfeita. A quadrilha consegue as informações que
quiser da cidade e tem contatos valiosos nos municípios vizinhos.
Às três horas da manhã, Raimundo recebe telefonema de
Cícero:
– O micro-ônibus que transporta estudantes que fazem
faculdades em Patos foi assaltado antes de Brejinho. A mulher do Capitão é uma
das vítimas. O motorista do micro-ônibus é o Pedro, que rapidamente deixou o
pessoal de São José do Egito e foi para Tabira.
Raimundo não conciliou mais o sono. Às cinco horas
partiu de automóvel para Tabira para falar com Pedro.
O motorista contou pormenores do assalto: os passageiros
vinham de uma festa de formatura, todos muito chiques; foram quatro assaltantes
jovens; levaram dinheiro, joias e celulares, porém o fato mais grave foi o
estupro da mulher do Capitão. Um dos bandidos escolheu para estuprar a sobrinha
da esposa do Capitão e ela se ofereceu para substituí-la. Um dos malfeitores
disse que tinha sido convidado para um assalto e não para estuprar mulheres. O
ladrão que parecia ser o líder do bando insistiu no estupro, porém aceitou a
troca sugerida. Como os assaltantes falaram da Serra de Teixeira, Pedro acha
que eles são de Patos. Ao menos dois criminosos tinham sotaque paulistano.
Raimundo pediu segredo da visita.
Raimundo telefona a Cícero e ordena contatar
receptadores de objetos roubados e traficantes de drogas em todas as cidades da
região. Ele sabe que vai ser fácil a polícia desvendar esse crime, porém quer
se adiantar e ser o responsável pela prisão dos meliantes. Se o plano der certo
o Capitão deixará de importuná-lo.
Antes das oito horas Raimundo chegou ao quartel. Toda
tropa já sabia do acontecimento. Tal o esperado, o Capitão não compareceu ao
expediente. Ás dez horas o Tenente chamou Raimundo. Estava em sua sala um homem
de nome Arthur, Sargento da PM lotado em Recife, que foi apresentado como irmão
da mulher do Capitão e pai da moça vítima do assalto. Também presente
Pedro, o motorista assaltado. O Tenente ordena a Raimundo que prepare uma
viatura, que irão fazer uma diligência no local do
assalto.
O Tenente foi no banco carona e Raimundo, Pedro e
Arthur no banco traseiro. Nota-se que Arthur está perturbado de ódio ao
extremo.
Arthur diz:
– Muitas famílias que migram ao Sul acham que mandando
de volta ao nordeste filho bandido, haverá regeneração, bem como não será
executado por policiais ou rivais do crime. Porém, a maioria não se emenda
e bandido que aqui atua dessa maneira é morto rapidamente.
Cabo Antônio, o motorista, diz:
– Esse tipo de marginal deveria ser castrado.
Raimundo, confiando no sentimento da vingança
entranhado na cultura nordestina, responde insuflando Arthur:
- Pode ter certeza, esses não ficarão vivos e devem
sofrer um pouco para morrerem. Lembro-me de um caso em Caruaru: um homem de
meia idade alugou a casa de fundos e seduziu uma garota de treze
anos de idade, filha do senhorio. Os tios da menina se reuniram, prenderam o
abusador, e antes de queimá-lo vivo amarrado em pneus de caminhão, caparam-no.
Toda polícia sabia quem eram os autores da morte, porém ninguém moveu uma palha
para processá-los. Ficou por isso mesmo.
Vasculharam bem a área, mas não conseguiram nada
importante à elucidação do crime. O tenente diz que o melhor é voltar, chamar
todas as vítimas visando alguma pista e fazer um inventário completo e minucioso
dos objetos roubados. Raimundo assistiu ao depoimento das vítimas. O tenente
decidiu que no dia seguinte, pela manhã, iriam a Patos pedir ajuda
à polícia paraibana. Raimundo pediu o número do telefone de Arthur. Às vinte e
uma horas Cícero telefona dizendo que em Flores, segundo um traficante, um
pessoal de Afogados da Ingazeira com essas características o procurou
para trocar cocaína por joias, mas como não tinha a droga no momento e está
esperando para amanhã um carregamento, trocaram maconha por uma joia e
acertaram que telefonariam confirmando a chegada da cocaína. Raimundo
imediatamente telefonou ao Tenente pedindo para não acompanhá-lo a Patos
porque tinha uma emergência em seu sítio. O tenente concordou.
Raimundo pegou Cícero e partiram para Flores.
Junto com Mário, o traficante, planejou a cilada para capturar os meliantes: o
local da prisão será uma tapera abandonada situada a dois quilômetros do
asfalto. Cícero entrega a Mário uma porção de cocaína tipo “escama de
peixe” que será o chamariz para levá-los à emboscada. Mário liga ao chefe da
quadrilha combinando o negócio para onze horas de amanhã.
Vinte
minutos após o Tenente partir para Patos, Raimundo telefona a Arthur dizendo
que tem informações seguras de um comprador de ouro em Flores que uns rapazes
de Afogados combinaram para vender joias hoje e o convida à diligência.
Arthur prontamente aceitou o convite. Raimundo pede-lhe que vista uma
roupa de polícia visando à camuflagem na Caatinga.
Chegam ao local preparado à emboscada às nove e meia e
assim terão tempo suficiente para trabalhar os pormenores da ação. De
dentro da tapera, Raimundo escolheu os lugares menos visíveis ao bando para
aproximação da polícia no momento da abordagem. Fizeram uns remendos na tapera,
deixando apenas uma abertura como saída rápida. O fator surpresa e o
maior poder de fogo serão o grande trunfo da polícia. Testaram os equipamentos
de rádio e os quatros se acomodaram nos locais escolhidos para cada um.
Combinou-se com o traficante, que ele, acompanhado de
um companheiro, se encontrará com os bandidos no asfalto, exibirá a
amostra da cocaína e os atrairá à tapera. Chegando à tapera averiguará as
joias, fornecerá a droga para experimentação e dirá que buscará a quantidade de
cocaína acertada na negociação.
Quando o traficante saiu, os bandidos ficaram ao redor
de um prato preparando a cocaína para consumir. Raimundo comunica aos
companheiros que é chegado o momento da abordagem, se aproxima da tapera e
grita:
– É a polícia! Estão cercados! Saiam de mãos para cima
ou vai acontecer o pior!
Os bandidos em primeiro momento ficaram imóveis,
trocaram palavras e como todos estavam armados com revólveres decidiram-se pelo
confronto. Saíram da tapera atirando para todos os lados. Três foram abatidos.
Um, num salto circense, alcançou uma moita de mufumbo e desapareceu da vista de
todos. Conferindo o estado dos três rapazes caídos, apenas um ainda
respirava. Raimundo deu um tiro de misericórdia na cabeça no rapaz
ainda vivo. Sem perda de tempo iniciaram a caçada ao fugitivo.
Raimundo vasculha o local em que o bandido desapareceu
e encontra sangue, sugerindo grave ferimento. Uma juriti voou assustada
de um fechado partido de favela entremeado de jurema-preta, indicando que
fugitivo está no local.
Raimundo grita:
– Os outros estão mortos, você tem a oportunidade de
sair vivo, se entregue.
O homem se rende. Pelas informações colhidas, Raimundo deduz
que o sobrevivente é o líder do bando. O ferimento no braço ainda sangra
e o homem está esmorecido. Raimundo lhe dá um pouco d’água para reanimá-lo
e o algema abraçado em tronco de angico distante cento e cinquenta metros da
tapera. Raimundo pergunta pelas joias e ele diz que não estão consigo. O
soldado fica vigiando o preso, Raimundo e os outros vão revistar os mortos e
nada encontram. Confabulam sobre a situação e decidem que a melhor
solução é matar o sobrevivente, enterrar os quatro em vala comum e incendiar o
automóvel da quadrilha em lugar diferente. Raimundo pega no
porta-malas do seu carro duas picaretas, uma pá e um enxadeco e ordena
que Cícero inicie a escavação da vala.
Raimundo volta com Arthur ao local onde
está o bandido ferido e interroga sobre as joias:
– Temos certeza que antes do tiroteio você estava com
as joias. A demora de socorro médico pode significar sua morte. Dizer logo onde
estão as peças é mais sensato, sem elas não sairemos daqui.
O preso confessa:
– No início da fuga joguei-as em uma moita de
alastrado perto de um grande pé mandacaru.
Arthur enxerga uma bolsa e com uma vara a retira
da moita de alastrado. Observando as joias reconhece a pulseira de ouro da
filha. Retiram a algema do preso e o guia para o local onde estavam os
cadáveres.
Quando chegam ao local Artur diz ao bandido:
– Estuprador da sua laia não fica vivo!
O bandido ainda tenta correr, mas, debilitado, não
consegue e Arthur acerta-o com três tiros.
No outro dia cedo Raimundo é chamado à sala do
Capitão. Na presença de Arthur parabeniza-o pela missão e que depois falaria
com ele a respeito de outras questões. Trata-o como amigo e não um subordinado.
Raimundo convida os dois para almoçar um guiné em seu sítio. Prontamente
aceitam. Combinam que ele iria agora e que Cicero os procuraria ao meio dia
para guiá-los.
Raimundo segue ao sítio. Tinha prendido três guinés e
iriam à panela. Tinha orgulho da sua rapidez para tratar e cozinhar aves.
Ao chegar ao sítio encontra dois rapazes colhendo
mangas. Solta um grito de alerta e um dos homens correu passando por baixo da
cerca de arame farpado. O outro vem ao seu encontro, nota-se um adolescente de
uns quinze anos. Diz que estavam com fome e resolveram comer umas mangas quase
maduras. Raimundo, sob o domínio da soberba, resolve lhe dar uma lição que
sirva como aviso: pega o menino pelo braço fortemente, saca a pistola,
esfrega a arma no rosto do garoto, com um empurrão o faz cair e aos chutes
expulsa-o da propriedade.
Ao terminar de tratar as aves, vê que
falta colorífico, para ele um tempero essencial. Irá a Tuparetama compra-lo.
Quando abre o portão recebe um tiro no peito. O estampido é de calibre 12.
Ainda enxerga o garoto espancado horas antes. Saca a pistola, mas a vista
fica turva. Pressente a morte.
(João Aleixo)