quinta-feira, 25 de junho de 2020

O Futuro da Ciência Brasileira após a Pandemia


O Futuro da Ciência Brasileira




    Escrever sobre o futuro costuma ser uma prática muito desacreditada em nossa sociedade. Por um lado, existem pessoas que ao fazê-lo erram brutalmente as suas previsões, que costumam ser baseadas em achismos de toda ordem – alguns relacionados, inclusive, às mais diversas divindades. Por outro lado, a vida hipermoderna é marcada por instabilidades políticas, ambientais, econômicas, tecnológicas, psicológicas e sociais – variáveis cada vez mais interligadas entre si – que desafiam os pesquisadores mais sérios a estabelecerem uma perspectiva precisa do futuro. Entretanto, a probabilidade de algumas coisas acontecerem é extremamente óbvia para os próximos anos, principalmente em relação à sobrevivência da ciência em nosso país. Sim, sobrevivência, pois precisaremos lidar com recursos extremamente escassos e desafios perversos para continuar a construção do conhecimento para as mais diversas áreas de pesquisa.
Nos últimos anos, o desenvolvimento científico do Brasil tem sofrido duros golpes, especialmente a desvalorização do conhecimento acadêmico e a diminuição de investimentos. Alguns setores já estavam dando sinais claros de debilidade antes da crise econômica que tende a continuar nos próximos anos. Os cursos de licenciatura das universidades privadas do Distrito Federal, por exemplo, deixaram gradualmente de existir. Alguns ainda sobrevivem no ensino a distância, mas sua sustentabilidade, sua qualidade e seu prestígio estão longe de serem atrativos para as novas gerações.
Sair de uma conjuntura dessa natureza é extremamente difícil e é absolutamente impossível se continuarmos querendo a manutenção do antigo modelo para todos os profissionais. Com isso, não quero dizer que devemos destruir ou diminuir o valor das instituições públicas de ensino, responsáveis pela maior parte da nossa produção científica. No contexto brasileiro, precisamos lutar para que elas continuem de pé e atuando de forma efetiva na construção e na difusão do conhecimento. Entretanto, fica cada vez mais evidente que uma quantidade elevada de graduados e pós-graduados não conseguirá ocupar os cargos tradicionais do mercado de trabalho. Algumas profissões, como a de professor(a) de português e matemática, tendem a continuar existindo, ainda que com salários mais reduzidos, mas esse quadro tende a ser mais crítico para outras áreas, como: filosofia, história, sociologia, artes e comunicação.
A saída mais plausível para os próximos anos é popularizar o acesso ao conhecimento acadêmico e o registro perene de debates e conteúdos acadêmicos por meio dos novos canais de comunicação, especialmente no YouTube. Um dos fatores de desmoralização da cultura acadêmica parece ter sido a pouca exploração dessa plataforma para difundir o conhecimento por meio de pesquisas e debates consistentes sobre temas relevantes para a sociedade contemporânea, como: o poder do discurso populista, a implementação de metodologias de ensino mais eficientes e a política econômica brasileira. Como o pensamento científico não foi predominante nessa plataforma nos últimos 10 anos, temos hoje discursos absurdos lutando pela hegemonia em alguns grupos da sociedade, como o caso de pessoas absolutamente convictas de que a Terra é plana.
Para tanto, podemos associar a nossa rotina de estudo e produção acadêmica, dentro do possível, a uma rotina de práticas ligadas ao YouTube. Como sou professor de Português e doutorando em Linguística, darei mais exemplos ligados à minha área, mas que sem dificuldades podem ser incorporadas a outras áreas do conhecimento.
Como acadêmicos, por regra, temos uma rotina de leitura bastante vasta e profunda sobre diversos temas. Em vez de guardar nossas leituras e observações em fichamentos e anotações privadas, podemos publicar vídeos simples em que discutimos as obras e os temas que estamos lendo e, por consequência, difundir o conhecimento acadêmico de forma mais prática para a sociedade. Precisamos manter, após o fim da pandemia, o hábito de gravar e publicar debates e entrevistas acadêmicas, pois, ao serem publicados no YouTube, tornam-se um precioso material de estudo para sustentar a hegemonia acadêmica com base em estudos científicos sólidos. Por fim, precisamos publicar vídeos que expliquem de forma mais objetiva conceitos de grande interesse por parte do grande público, como o fazem os dicionários científicos. Deve-se ressaltar que os vídeos devem ter títulos sem sensacionalismos que ajudem o grande público a encontrá-lo pelos buscadores de forma mais fácil e prática.
Esse conjunto de práticas pode ser mais atraente a jovens pesquisadores das áreas de ciências humanas, que enfrentarão o lado mais delicado da crise, pois terão muita dificuldade de obter um emprego remunerado em áreas convencionais de ensino e pesquisa pela quantidade escassa de recursos ofertados pelo poder público nesta década. O YouTube permite diversas formas de remuneração, principalmente por meio da veiculação de anúncios publicitários e campanhas de financiamento coletivo. Além disso, um canal no YouTube bem sucedido pode ajudar a construir uma reputação acadêmica que facilite o acesso à docência em instituições de ensino superior, principalmente as privadas, e a publicação de livros autorais sobre temas ligados à sua área de atuação profissional. Dessa forma, torna-se possível uma inserção sólida do conhecimento acadêmico na nossa sociedade.
Algumas associações e editoras começaram, no contexto da pandemia, a ter uma maior capilaridade na sociedade. O canal da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística) já chegou a 15 mil inscritos; a Parábola Editorial, principal editora da área de Linguística, alcançou 13.600 inscritos; a Editora Contexto possui quase 16 mil inscritos; e a Companhia das Letras já tem cerca de 50 mil inscritos. Esses canais fortalecem o discurso acadêmico e ajudam na formação continuada não só de pesquisadores, mas também de diversos grupos sociais sobre temas centrais da contemporaneidade, como: o combate ao racismo, metodologias de ensino para a educação básica, os usos das novas tecnologias na vida social e o papel imprescindível da arte para as sociedades contemporâneas.
Esses números podem parecer humildes se comparáveis a canais de YouTubers populares, mas, antes de ser um obstáculo, isso deve ser visto como uma oportunidade para expandir o papel do conhecimento científico na vida cotidiana. E precisamos lutar bastante nesse processo, pois trata-se de uma guerra por sobrevivência antes de qualquer coisa.
(Fernando Fidelix Nunes)