quinta-feira, 25 de junho de 2020

O Futuro da Ciência Brasileira após a Pandemia


O Futuro da Ciência Brasileira




    Escrever sobre o futuro costuma ser uma prática muito desacreditada em nossa sociedade. Por um lado, existem pessoas que ao fazê-lo erram brutalmente as suas previsões, que costumam ser baseadas em achismos de toda ordem – alguns relacionados, inclusive, às mais diversas divindades. Por outro lado, a vida hipermoderna é marcada por instabilidades políticas, ambientais, econômicas, tecnológicas, psicológicas e sociais – variáveis cada vez mais interligadas entre si – que desafiam os pesquisadores mais sérios a estabelecerem uma perspectiva precisa do futuro. Entretanto, a probabilidade de algumas coisas acontecerem é extremamente óbvia para os próximos anos, principalmente em relação à sobrevivência da ciência em nosso país. Sim, sobrevivência, pois precisaremos lidar com recursos extremamente escassos e desafios perversos para continuar a construção do conhecimento para as mais diversas áreas de pesquisa.
Nos últimos anos, o desenvolvimento científico do Brasil tem sofrido duros golpes, especialmente a desvalorização do conhecimento acadêmico e a diminuição de investimentos. Alguns setores já estavam dando sinais claros de debilidade antes da crise econômica que tende a continuar nos próximos anos. Os cursos de licenciatura das universidades privadas do Distrito Federal, por exemplo, deixaram gradualmente de existir. Alguns ainda sobrevivem no ensino a distância, mas sua sustentabilidade, sua qualidade e seu prestígio estão longe de serem atrativos para as novas gerações.
Sair de uma conjuntura dessa natureza é extremamente difícil e é absolutamente impossível se continuarmos querendo a manutenção do antigo modelo para todos os profissionais. Com isso, não quero dizer que devemos destruir ou diminuir o valor das instituições públicas de ensino, responsáveis pela maior parte da nossa produção científica. No contexto brasileiro, precisamos lutar para que elas continuem de pé e atuando de forma efetiva na construção e na difusão do conhecimento. Entretanto, fica cada vez mais evidente que uma quantidade elevada de graduados e pós-graduados não conseguirá ocupar os cargos tradicionais do mercado de trabalho. Algumas profissões, como a de professor(a) de português e matemática, tendem a continuar existindo, ainda que com salários mais reduzidos, mas esse quadro tende a ser mais crítico para outras áreas, como: filosofia, história, sociologia, artes e comunicação.
A saída mais plausível para os próximos anos é popularizar o acesso ao conhecimento acadêmico e o registro perene de debates e conteúdos acadêmicos por meio dos novos canais de comunicação, especialmente no YouTube. Um dos fatores de desmoralização da cultura acadêmica parece ter sido a pouca exploração dessa plataforma para difundir o conhecimento por meio de pesquisas e debates consistentes sobre temas relevantes para a sociedade contemporânea, como: o poder do discurso populista, a implementação de metodologias de ensino mais eficientes e a política econômica brasileira. Como o pensamento científico não foi predominante nessa plataforma nos últimos 10 anos, temos hoje discursos absurdos lutando pela hegemonia em alguns grupos da sociedade, como o caso de pessoas absolutamente convictas de que a Terra é plana.
Para tanto, podemos associar a nossa rotina de estudo e produção acadêmica, dentro do possível, a uma rotina de práticas ligadas ao YouTube. Como sou professor de Português e doutorando em Linguística, darei mais exemplos ligados à minha área, mas que sem dificuldades podem ser incorporadas a outras áreas do conhecimento.
Como acadêmicos, por regra, temos uma rotina de leitura bastante vasta e profunda sobre diversos temas. Em vez de guardar nossas leituras e observações em fichamentos e anotações privadas, podemos publicar vídeos simples em que discutimos as obras e os temas que estamos lendo e, por consequência, difundir o conhecimento acadêmico de forma mais prática para a sociedade. Precisamos manter, após o fim da pandemia, o hábito de gravar e publicar debates e entrevistas acadêmicas, pois, ao serem publicados no YouTube, tornam-se um precioso material de estudo para sustentar a hegemonia acadêmica com base em estudos científicos sólidos. Por fim, precisamos publicar vídeos que expliquem de forma mais objetiva conceitos de grande interesse por parte do grande público, como o fazem os dicionários científicos. Deve-se ressaltar que os vídeos devem ter títulos sem sensacionalismos que ajudem o grande público a encontrá-lo pelos buscadores de forma mais fácil e prática.
Esse conjunto de práticas pode ser mais atraente a jovens pesquisadores das áreas de ciências humanas, que enfrentarão o lado mais delicado da crise, pois terão muita dificuldade de obter um emprego remunerado em áreas convencionais de ensino e pesquisa pela quantidade escassa de recursos ofertados pelo poder público nesta década. O YouTube permite diversas formas de remuneração, principalmente por meio da veiculação de anúncios publicitários e campanhas de financiamento coletivo. Além disso, um canal no YouTube bem sucedido pode ajudar a construir uma reputação acadêmica que facilite o acesso à docência em instituições de ensino superior, principalmente as privadas, e a publicação de livros autorais sobre temas ligados à sua área de atuação profissional. Dessa forma, torna-se possível uma inserção sólida do conhecimento acadêmico na nossa sociedade.
Algumas associações e editoras começaram, no contexto da pandemia, a ter uma maior capilaridade na sociedade. O canal da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística) já chegou a 15 mil inscritos; a Parábola Editorial, principal editora da área de Linguística, alcançou 13.600 inscritos; a Editora Contexto possui quase 16 mil inscritos; e a Companhia das Letras já tem cerca de 50 mil inscritos. Esses canais fortalecem o discurso acadêmico e ajudam na formação continuada não só de pesquisadores, mas também de diversos grupos sociais sobre temas centrais da contemporaneidade, como: o combate ao racismo, metodologias de ensino para a educação básica, os usos das novas tecnologias na vida social e o papel imprescindível da arte para as sociedades contemporâneas.
Esses números podem parecer humildes se comparáveis a canais de YouTubers populares, mas, antes de ser um obstáculo, isso deve ser visto como uma oportunidade para expandir o papel do conhecimento científico na vida cotidiana. E precisamos lutar bastante nesse processo, pois trata-se de uma guerra por sobrevivência antes de qualquer coisa.
(Fernando Fidelix Nunes)

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Conto Flor do Cerrado

Flor do Cerrado




O sol nasceu no início da minha caminhada pelos canteiros do Eixo Rodoviário Norte. O céu sem nuvens me deixa animado. A boa claridade indica lindas fotografias. Avistei o conjunto de pés de sapucaias frontal à SQN 110. As belas flores e, principalmente, o marrom brilhoso das folhas novas mostram as sapucaias no auge de sua beleza. 

Ao me posicionar para fotografar uma sapucaia, notei um casal fazendo o mesmo em outra sapucaia. A beleza da mulher me sensibilizou e me aproximei. Meu esporte predileto é olhar mulher bonita.  O rosto do homem me pareceu conhecido. Em alguns segundos reconheci-o. Era Urias. Fazia mais de trinta anos a última vez que o vi. Fomos colegas de escola por três anos seguidos.  Mudou de Brasília para São Paulo aos dezessete anos e perdi o contato. Fazia muito sucesso com as garotas. Hoje, na meia idade, parece um de galã de Hollywood. O pai era um pastor evangélico em ascensão e tenho notícias que pertence à alta hierarquia de um poderoso grupo religioso. Sei também que Urias migrou para os Estados Unidos ainda muito jovem. 

Tenho antipatia por evangelizadores protestantes. Sempre me abordam com as irritantes frases: “qual sua religião”? “você acredita em Jesus Cristo como o Salvador filho de Deus”? Eu respondo para chocar e cortar a conversa que sou umbandista e meus santos favoritos é o Zé Pilintra e o Exu Ventania. Urias era diferente, eu admirava seu carisma, empatia e palavras bem colocadas ao investir para conquistar adeptos à sua igreja.

A intolerância dos evangélicos com os umbandistas e com os santos católicos é compreensível porque são seus concorrentes no seu principal atrativo: as práticas de curas milagrosas. E, afora os santos, nessa pauta, ao menos aqui em Brasília, os umbandistas são pioneiros. Meu pai conta que nos primeiros anos da nova capital as igrejas evangélicas eram raras e os terreiros de umbanda numerosos e se ouvia por toda parte o melodioso rufar dos tambores aos finais de semana.

Aproximo-me do casal e tentando não ser caricatural, imito solenemente Urias evangelizando:

– O senhor me desculpe, mas não poderia deixar de falar-lhes, enxergo, junto ao seu corpo, uma poderosa aura. Essa energia divina compete com o brilho e beleza das sapucaias. Harmoniosa representação da paz e com certeza tem capacidade de curas. Nossa igreja será privilegiada e os cultos engradecidos com sua presença.

(Sapucaia)

Urias e a mulher me olham com ar de surpresa. 
Imediatamente procurei um cartão avulso na minha carteira, lhe entreguei e disse:

– Meu nome é Urias e no cartão se lê os horários dos cultos e o endereço da nossa igreja. 

Tirei o boné para ver se ele me reconhece.

– Vagner Marinho, sempre zombador! – disse Urias bastante surpreso.

– Engano seu, você é meu ídolo. Desculpe-me se não lhe agradei com meu desempenho de  canastrão. Digo-lhe mais: a única igreja de “crente” que frequentei foi a sua – respondi de forma efusiva.

Urias replicou:

– Sua fé não existia. A razão de sua presença na igreja era a paquera de garotas. 

– Também só tinha moças bonitas! Uma pena que a sua família mudou, meu sonho de namorador era esperar sua irmã, na época com doze anos, completar quinze. 

Urias sorriu e desconversou:

– Após mais de trinta anos sem lhe ver, sempre me lembro de você.  Espero que enfim reconheça que fui o mais eficiente conquistador do Colégio Leonardo da Vinci.

- Admito que você fosse o mais enxerido.

Sorrimos e ele me apresentou a sua acompanhante:

– Esta é a Fernanda. Também chamada de Flor-do-Cerrado.

– Ele continua oferecido às mulheres. E minha aura tem algum destaque? – ela perguntou com curiosidade  para mim.

– Três belas cores formam sua aréola: a amarela do ipê, roxa do cega-machado e azul do jacarandá-mimoso. Olhe as flores daqueles espécimes e confira sua aura. O amarelo representa espírito de aventura, o roxo, sublime sensualidade e o azul, amor à liberdade. 
         

(Ipê-amarelo)


(Cega-machado)


                                                 
(Jacarandá-mimoso)

Fernanda com um sorriso ambíguo respondeu:

– Soou piegas. Porém, gostei do colorido. Vamos fotografar as belas floradas com as cores da minha aura.

Fernanda se afasta procurando posições para melhor fotografar.

– Essa grande mangueira é aquela de copa fechada e fácil de subir onde a gente fumava maconha?  E você ainda fuma erva? – perguntou-me discretamente Urias.

– Sim, é aquela que nos servia de fumódromo. Parei de fumar maconha. Foi peraltice da adolescência. 

- Acredito. Agora, conheço duas pessoas que fumaram a erva e deixaram: você e Gilberto Gil – respondeu com profunda ironia.                

– Porém, se você quiser, eu consigo maconha de boa qualidade. Tenho comigo dois baseados. Vamos ao cerrado da 613. Tenho que fotografar umas flores e o local é discreto. Dá para ir a pé. Mas, acho melhor irmos no meu carro – propus.

Urias se aproximou de Fernanda e disse:

– Meu bem! Achei a maconha!

Seguimos até a CLN 413 e estacionei junto ao portão de entrada do Parque Olhos D’Água, atravessamos a L2 Norte. Peço que me aguardem na margem da avenida. Farei uma ronda no local como medida de segurança. Nas moitas de coco-babão, podemos encontrar acampamento de sem tetos. Hoje a barra está limpa. Aceno para que venham a mim.  Chegamos ao lugar; um pedaço de cerrado queimado há um mês.  Quem não conhece o Cerrado, não acreditaria que, nesse exíguo tempo pós-incêndio, surgiria tantos brotos e flores.   O Cerrado é como fênix.
















  



Urias, então, começou a desabafar:

– Em San Francisco, eu fumo e compro maconha sossegadamente. O Brasil adora ficar a reboque em questões de progresso. Vale lembrar que foi o ultimo país das Américas a acabar com a escravidão. Também podemos relacionar as políticas públicas erradas nos primórdios da informática e agora a mesma ignorância com a maconha. Enquanto países progressistas liberam o consumo recreativo e medicamentoso, bem como investem em pesquisas, no Brasil reina o atraso representado pela política de repressão. Não tenho dúvidas: a liberação da droga seria a redenção econômica da região Nordeste; lá tem potencial de produzir maconha de excelente qualidade com pouco investimento. Até hoje sinto saudades da variedade rabo-de-raposa, produzida na região de Cabrobó em Pernambuco que chegava a Brasília na década de noventa.  

– Li uma entrevista com um agricultor de Salgueiro, preso pelo crime de plantar maconha para vender. Ele disse que há três anos plantou feijão-de-corda. Foi uma grande safra em que não colheu nem a metade; a colheita não compensava devido aos preços baixos - dava de graça para colherem e ninguém queria. Já com a maconha foi diferente: o traficante forneceu sementes e financiou todas as etapas da produção e a comprava. Contemporizando os preços: o saco de 60 kg de feijão-de-corda valia R$ 20,00 e 1 kg de maconha ele entregava a R$ 100,00. Ele ainda disse que depois de solto iria para São Paulo, porém, sem dúvidas, o traficante encontraria outra pessoa para plantar. É assim também com a venda da droga ao consumidor- o traficante é preso ou morto, imediatamente alguém o substitui. Se vive sem pai e mãe, no entanto não se vive sem dinheiro. Com a legalização recreativa da maconha, tenho certeza, o tráfico diminuiria mais de oitenta por cento e, por conseguinte, a retração radical dos bárbaros homicídios. Quando o viciado em maconha vai comprá-la quase sempre o traficante repassa outras drogas mais viciantes e de efeitos degradantes. A repressão do estado ao consumo de maconha está empurrando boa parte dos nossos jovens ao precipício. Considero Latrocínios, execuções de devedores e de rivais bem como roubos em geral arrolados ao tráfico uma pandemia no Brasil. As milícias formadas ou comandadas por policiais ou ex-policiais foram fortalecidas economicamente pelo tráfico e tomaram conta de cidades que não sejam tão pequenas em que todos se conhecem ou tão grandes onde há dificuldade no controle. Essas milícias assassinam e roubam impunemente e sem importunação; são infiltradas nas igrejas e nos poderes judiciário, executivo e legislativo. Nessas cidades dominadas, afora os cidadãos poderosos, se um morador tiver dinheiro ou joias guardadas em casa, fatalmente será assaltado pelos bem informados milicianos. As milícias se acham donos da cidade. E, de fato, são! A democracia brasileira já não existe em muitas cidades, pois o poder efetivo é das milícias. Os outros poderes são cúmplices ou omissos por covardia. Constrangedor, deprimente e ridículo: um comandante de um Batalhão da PM, de uma dessas cidades dominadas por milícias, postou um vídeo defendendo e justificando uma chacina onde foram mortos cinco jovens por subordinados em que era obvio uma queima de arquivo.  

Depois do meu comentário, ofereci colírio para usarem antes de fumar o baseado: qualquer contratempo pode-se descartar o cigarro, porém a terrível marca dos olhos vermelhos ninguém se livra. Tanto faz usar colírio antes ou depois de fumar, o efeito é o mesmo.

Forneci a maconha e a seda a Urias. Ele deve conservar o admirável talento de enrolar cigarros: preparava a seda e botava dependurada na boca, esfarelava a pedra na mão esquerda e em movimentos rápidos enrolava o baseado e o colava com saliva. Mesmo sem pilar o baseado ficava em formato perfeito, boa carburação, nunca subia jacaré e nem abria.


– Faça o baseado com a toda maconha. É para três e eu sou cabeção – orientei.

Peguei uma enxada que escondo em uma moita de coco-babão e comecei a capinar braquiária. Essa área tem grande produção de flores porque ainda sobrevivem algumas espécies de gramíneas nativas que dificultam a total colonização do terreno pela braquiária. Existem dezenas de fitofisionomias clímax no bioma Cerrado e quero formar mais uma. A braquiária é a carrasca do cerrado. O fogo é benéfico ao Cerrado em área sem infestação da braquiária, com a maldita invasora o incêndio é potencializado e se repetido anualmente raleia o local de espécies e espécimes nativos. A prioridade das autoridades em evitar incêndios no Cerrado é um erro obvio. Nunca se impedirá um incêndio em área de cerrado por longo tempo. Quanto mais tempo durar uma área sem incêndio mais destruidor será quando acontecer uma ocorrência. O fogo e o cerrado convivem em regime de mutualismo. As bases à existência de vegetação rica em espécies endêmicas do cerrado são duas, sobretudo: a ocorrência de incêndios em intervalos normais e a alta acidez do solo. O fogo molda e conserva as fitofisionomias do Bioma Cerrado em estágio clímax. As matas ciliares da região do Cerrado são formadas em solos eutróficos; por isso, nessas matas, inexistem espécies endêmicas características do Cerrado. Nas formações clímax florestais do bioma os incêndios são raros e de pouco alcance.  O cerradão é uma fitofisionomia em que as espécies endêmicas do bioma estão em decadência, e, que as espécies comuns á Mata Atlântica e à Amazônia estão a invadir a área. Tudo indica que, naturalmente, em escala de tempo geológico, a vegetação endêmica do Bioma Cerrado está em extinção. Grandes distúrbios tal fogo demais, fogo de menos, desmatamento e formação de voçorocas fazem cerrado stricto sensu perder a condição clímax e nunca mais retornar ao status original. Uma voçoroca, em estágio de estabilização, aberta ao meio de um cerrado stricto sensu é logo colonizada por espécies não endêmica do bioma. 

– O baseado está pronto – avisou Urias.

– Vamos fumar na sombra daquela cagaiteira. E, por favor, quem estiver fumando não fale: o conversador atrapalha o bom andamento da roda – alertei.



(Cagaiteira)

Terminado o baseado, pedi-lhes que me acompanhassem até um pé de erva-cidreira-do-campo.

– Vamos fotografar a beleza deste espécime – disse eu. 


erva-cidreira-do-campo


erva-cidreira-do-campo


folha seca da erva-cidreira-do-campo

Pego um molho de flores, mastigo uma parte e com resto esfrego nas mãos e no rosto. Peço para o casal fazer o mesmo, no intuito de diminuir o odor da maconha. Procuro folhas secas da erva-cidreira-do-campo no chão, de tão bonitas parecem joias. 

Encontro duas; uma pequena e outra maior e a entrego a Fernanda. Ela fica encantada. Comemos duas espécies nativas de frutas da época: murici-rasteiro e araçá-do-campo. O casal aprovou os sabores, especialmente o do araçá.

Convido-os ao comércio da CLN 413 para tomar água de coco e sorvete. Já são dez horas e o calor aumenta.

Chegamos ao portão de entrada do Parque Olhos D’água onde tem um ponto de água de coco e falo:

– Peçam a água enquanto pego minha carteira no carro.

Quando estou voltando vi um homem, armado com uma pistola, aos gritos:                                                      

– Saia da frente desse patife, piranha! Não lhe mato por nossos filhos. Não os quero com a mãe morta e o pai na cadeia... Mas, esse traidor vai morrer agora. Ele usou da sua influência para me afastar do Brasil em missão da igreja.

– Não faça isso David. Gritou Fernanda.

Por instinto, aproximo-me rapidamente do agressor e dou um murro na sua cabeça. O golpe foi falho e ele se volta para mim e atira. Senti que fui atingido no braço e corro em zigue-zague  para o comércio. Olho para trás e noto Urias correndo ao portão do parque e o marido de Fernanda o procurando. Até onde vejo, ele não acertou Urias. Tenho sensação de desmaio e peço a Fernanda, que se aproximou de mim, que me leve ao Setor Hospitalar Norte, onde existem hospitais que atendem pelo meu convênio de saúde. Nem por isso perdi o bom humor e exclamei:

– Um romance em que Urias rouba a mulher de David nunca poderia dar certo!

Fernanda sorri.  

O médico indica cirurgia e me encaminha ao centro cirúrgico. Fernanda me acompanha. Operam com anestesia geral. Quando acordo da anestesia, Fernanda ainda me acompanha. Peço notícias de Urias. Fernanda diz que ele escapou ileso e que o pai dele, Pastor Elias, está aguardando autorização médica para me visitar antes do meu depoimento à polícia. 

O Pastor entra e Fernanda sai. Após palavras de conforto ele propõe que eu assuma a versão de um mal entendido entre eu e David, descartando o envolvimento de Urias e Fernanda. E, que eu serei bem gratificado monetariamente. Penso: estou falido e acho que vou aceitar a proposta. Se fosse eu ainda jovem e inexperiente, para justificar a minha falta de caráter, contaria a verdade sobre minha situação financeira. Porém, vou negociar para conseguir o maior valor possível e falo:

– De um ato heroico que pratiquei em que provavelmente salvei a vida do seu filho, tive um ferimento grave e passar a ser criminoso é uma situação complicada. Porém, todo homem tem seu preço. Qual o valor?

De pronto ele me faz uma proposta irrecusável e no mesmo momento telefona ao seu banco e autoriza a transferência à minha conta corrente.

À polícia contei que foi uma briga de trânsito. Tal como combinado com o pai de Urias.

Meus pais chegam logo depois da polícia. Apresento a Fernanda como a pessoa que me socorreu. Fernanda diz que precisa ir embora, anota meu telefone e diz que acompanhará meu caso.

Fiquei em casa de repouso por uma semana. No oitavo dia depois do incidente, Flor do Cerrado me telefona. Pergunto de qual flor do cerrado ela quer ser chamada e sugiro: caliandra ou lírio-do-campo? 


Caliandra

Lírio do campo

Marcamos um encontro. Também me enviou uma foto montagem: ela nua, de costas, com uma aréola das flores que fotografou no maldito dia. Respondi: muito linda!!!

Como o assinalado, está ela à minha espera. Primeiramente me informa que Urias foi para os Estados Unidos, David foi para São Paulo levando os dois filhos e não teve ainda contato com nenhum dos dois. Que esteve ontem no Jardim de Alessandra com dois amigos para “falar com seu João”. 

E me pergunta quem é Alessandra. Digo-lhe que dei o nome ao jardim em homenagem à minha falecida esposa. Conto-lhe que perdi Alessandra em acidente de carro em que atropelei um cavalo em uma noite chuvosa e o animal caiu no para-brisa, matando-a. Tive apenas ferimentos leves. Só não me matei na hora devido ao nosso filho. Eu não queria viajar, pois sabia dos perigos da estrada em uma noite dessas. Ela insistia porque queria ver o nosso filho que ficara com os avós maternos. Nunca me perdoei por não ter sido mais enérgico e não viajar.

Flor do Cerrado me mostra uma fotografia que bateu ontem e diz:  

– Quero que me chame pelo nome desta flor.

Identifico a flor e lhe falo:

– É uma espécie, nativa do Cerrado, miniatura do jacarandá-mimoso, representante azul da sua aura. O jacarandá-mimoso é também chamado de caroba e a espécie da fotografia é conhecida como carobinha. 

– Estou batizada – confessou-me. 


Carobinha


Bebo uma cerveja ela um suco. Convido-a para um encontro com “seu João”. Entramos no meu carro. Peço para ela assumir o volante e acendo o baseado. Enquanto fumamos a maconha pergunto se ela quer almoçar e qual restaurante. Ela aceita e diz para eu escolher um lugar discreto. Sugiro um motel e ela sorri.

Ao entrar no quarto começamos os amassos. Partimos ao coito. A certo momento lhe digo que estou quase ejaculando e sugiro que eu deixe a penetração na vagina e encoste o pênis no seu ânus. Quero masturbá-la. Para mim o homem ejacular antes do orgasmo da mulher é um erro fatal. É o chamado mela buceta.  Peço para penetrar a cabeça do pênis e ela me fala:

– Eu não queria dar cu, mas como já está nas beiradas pode enfiar. Porém lembre-se: pica tem cabeça, mas não tem ombros. Sua pica é muito grande e eu não quero ser arrombada. Espero que você controle a penetração porque eu com a volúpia que estou, transformo-me numa tarada inconsequente.

Respondo: 

– Acho melhor usar a técnica da rodilha de pano ao redor do pênis para fazer a função dos ombros. Não sou sádico. Assim vamos garantir uma foda sem machucados.

Faço uma rodilha com uma toalha, o que assegura uma penetração rasa.

Ela com a voz luxuriosa: 

– Meu amor! A solução é genial. 

Aos quinze dias depois do tiro, o ferimento já não atrapalhava mais. Pedi férias no trabalho para ficar com Carobinha. Onde tinha turismo ecológico com hospedagem confortável ao redor de Brasília, nós frequentamos. Duraram uns vinte dias nossa lua de mel. Gastei uma pequena fortuna.

Ela é uma excelente cantora. Toca e compõe ao violão. Quando ela conheceu o marido era uma grande promessa da música gospel. Teve dois filhos com diferença de menos de um ano entre os dois. Teve que parar a carreira, pensando que recomeçaria quando os filhos crescessem um pouco. Porém, o marido não aceitava sua volta à vida artística.  E o amor que sentia por David transformou-se em ressentimento.

Quando ela desceu do táxi para entrar no meu carro, senti que algo diferente estava acontecendo.

Carobinha foi logo dizendo:

– Estou sentindo muita falta dos meus filhos. David me telefonou afirmando que me perdoa, que vai aceitar e até me ajudar à minha carreira musical. Sentirei saudades suas. Voltarei para minha casa ainda hoje.



Conto e fotos de João Aleixo

sexta-feira, 27 de março de 2020

A Política do Eufemismo


A Política do Eufemismo


A ideia mais repetida por mim nas crônicas deste blog é a de que vivemos, nos últimos anos, numa realidade que nenhum grande nome da literatura conseguiria prever, isto é, a nossa realidade provavelmente será a principal obra de ficção da história da humanidade. Saramago (apesar de ter produzido “Ensaio sobre a Cegueira”), Mário de Andrade ou Clarice Lispector jamais conseguiriam expressar a angústia dos nossos tempos e, muito menos, o seu surrealismo trágico. Daqui a 20 anos, iremos olhar para este momento da história com um profundo e confuso assombro. Além das dores cotidianas que afligem a alma humana – como problemas familiares, amorosos e profissionais –, lidamos com duas das mais cruéis faces da vida humana: a morte e o sofrimento diante da nossa inépcia total para lidar com um problema tão grave e caótico.

Nessa conjuntura, observamos o uso indiscriminado de eufemismos para discutir a realidade brasileira. Para quem não lembra ou não teve aula sobre o assunto, o eufemismo é uma figura de linguagem que consiste, basicamente, na suavização do significado de um enunciado por meio de expressões que lhe tirem o “peso”. Em vez de dizer “ela morreu”, por exemplo, dizemos que ela não está mais entre nós ou que ela se foi. O que é estranho hoje é a maneira manipuladora como o eufemismo vem sendo utilizado, especialmente no atual contexto político e social.

O amigo do Queiroz anda chamando o novo coronavírus de “gripezinha” e “resfriadinho” de forma recorrente. Trata-se de uma pandemia que pode matar uma parcela considerável da população, principalmente idosos, e destroçar social e economicamente a sociedade brasileira. Ainda fala em ter histórico de atleta que lhe dá forças para sair imune da doença. O cara é incapaz de fazer flexões direito, mesmo antes da facada, e fica pagando de atleta para enganar trouxa. É um ótimo exemplo de uso do eufemismo para manipular e dissimular os fatos reais. A sorte do brasileiro é que ministros, deputados, senadores, governadores e prefeitos estão sendo mais responsáveis e eficientes que um presidente que espalha a confusão a todo custo. No fim das contas, ele gosta e sente um prazer inenarrável ao ser o centro das atenções de polêmicas toscas.

Do ponto de vista econômico, o governo projeta que o PIB do Brasil vai crescer 0% neste ano, contra todas as expectativas globais de tombo da economia brasileira e global. Diante de uma visível manipulação, eu vi comentaristas dizerem que é uma “previsão otimista” por parte do desgoverno. Previsão otimista diante de todas as variáveis contrárias é pura e simples manipulação institucional para enganar conscientemente a população mais exposta a essa crise, que precisa ser acolhida de forma mais eficiente para não cair nos braços da ignorância e do obscurantismo.

Por fim, aconteceram “mudanças” nas regras de concessão de bolsas de estudos dando prioridade a áreas de retorno imediato. Isso quer dizer que querem dilacerar as ciências humanas para que se tornem áreas cada vez mais sucateadas e sem perspectiva futura sólida para seus pesquisadores. Não se trata de uma troca de prioridades, pois são áreas já marginalizadas do ponto de vista do investimento, mas de um ataque à cultura e ao conhecimento capaz de fazer o ser humano ampliar a sua sensibilidade e mudar diversas políticas públicas para combater o subdesenvolvimento da sociedade brasileira. Claro que o investimento nas ciências humanas, como em todas as áreas, pode ser discutido e modificado, mas a maneira como foi feito esse processo é sorrateira, tosca e inadmissível.

Neste momento, o Brasil e o mundo precisam, acima de tudo, de conhecimentos e ações técnicas para confrontar as crises múltiplas oriundas da pandemia do novo coronavírus. A humanidade precisa pensar no seu bem-estar com base nas orientações das autoridades técnicas da área de saúde para conter a expansão da pandemia, ou seja, seguir em quarentena e com cuidados redobrados com a higiene – o que, para se materializar, precisa do auxílio do Estado Brasileiro, principalmente, por meio de vouchers. Já a mente pode ser tratada por meio da abertura de diálogos com várias pessoas próximas e de grandes nomes da literatura, da filosofia, da psicologia, da sociologia, da antropologia, da linguística, do direito, das ciências políticas, enfim, da humanidade.


(Fernando Fidelix Nunes)

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Conto "Quer Ler a Sorte?"


(Ilustração de Jeferson Rafael Ortiz Fernandez)

Quer Ler a Sorte?


Há pessoas que acreditam veementemente na necessidade de aguardar a produção de um inequívoco estudo técnico, tal como os do IBGE, para se compreender profundamente uma pessoa ou mesmo um país. Se os especialistas soubessem que a análise de apenas uma historieta rotineira captada da varanda de casa ou do celular consegue absorver os anseios fugazes e perenes de uma fração substancial da população, abandonariam os números dos relatórios e seriam devotos da irrefutável força da cultura peculiar de um povo. O público duvida? Faz bem! Afinal, a dúvida criou o mundo. Entretanto, a ficção muitas vezes traz a verossimilhança nua, crua e dissimulada escondida por trás dos números e dos disfarces mais precisos e obsoletos. Bem... chega de papo e vamos ao que interessa.

Após um longo período de espera e muitas especulações sobre datas e prazos, Reinaldo, finalmente, fora nomeado para o cargo de técnico judiciário no TJDFT. Ao ler o seu nome escrito no Diário Oficial, disponível na internet na manhã de uma terça-feira, o jovem de 25 anos não conseguiu conter a alegria. Soltou um grito molhado por compulsivas lágrimas semelhante ao de um torcedor que vê seu time, com três jogadores a menos, fazer o gol do título no último lance do jogo contra o maior rival na casa do adversário, o que fez a vizinha de cima, no terceiro andar, suspeitar ser uma crise psicológica incomum.

Sua família, a começar pelo pai, o parabenizou bastante. Depois de acalorados cumprimentos e telefonemas para os amigos e parentes mais próximos, todos falaram dos novos rumos para a futura vida do jovem. As palavras estabilidade, tranquilidade, planejamento e benefícios ditavam as previsões sobre o seu futuro e os seus caminhos. Nenhum quebra-molas, nenhum buraco, nenhum empecilho nem sequer uma única curva. Apenas uma linha reta sem deslizes em um asfalto perfeito e plano, cenário ideal para um carro luxuoso de tanque cheio desfilar pela Capital da Esperança.

Assim que confirmou a novidade a todos em sua casa, Reinaldo ligou para Raquel, sua namorada. Boa companheira que compartilhava as alegrias de seu amor, a moça ficou em êxtase e, enquanto sorria bastante, elogiava seu namorado. Devido às suas obrigações como nutricionista no Hospital Regional da Asa Norte, não pôde falar por mais de 2 minutos.

– Amor, a gente precisa comemorar! – disse Raquel com entusiasmo – você precisa curtir a sua conquista.

– Lógico! Olha... vou comemorar com meus pais na hora do almoço. Você pode vir com a gente ou o pessoal do hospital vai te prender?

– Ixi, amor... vou ter que pagar umas horas aqui bem nesse horário. Faz assim: passa aqui umas sete e me pega, daí a gente sai pra algum lugar. Podemos ir naquele bar que o Wesley comemorou o aniversário na 409.

– Ah, amor! Queria você do meu lado – mesmo sem ver, ele tinha certeza de que a namorada sorria devido àquelas palavras. Passo aí umas seis horas tá?

– Sete! Presta atenção, Rei! – disse em tom de pilhéria. Amor, não posso falar muito. Vão ficar enchendo meu saco aqui. Beijo! E comemore a sua conquista. Você merece!

– Beijão e até mais, lindona.

– Beijão, meu servidor!

– Beijão de língua, razão do meu libido! – terminou o rapaz com uma referência que não foi bem entendida pela namorada, que cumpria suas atribuições com o pensamento no futuro do seu amado.

Após contar para a pessoa mais importante do mundo para ele, publicou em 3 redes sociais, acompanhado de um print da imagem da página em que a sua nomeação estava, um curto texto, que tinha o objetivo de alcançar a pujança de um canto genetlíaco dedicado ao serviço público, mas não passava de um amontoado de lugares-comuns. Apesar de não ser uma postagem sublime baseada na combinação adequada das modalidades semióticas, recebeu pouco mais de quatro centenas de curtidas e muitas felicitações pelo seu feito tão suado.

Após a publicidade de seu novo status, como não podia deixar de ser, Reinaldo divagou sobre o futuro. Teve medo de se frustrar no serviço. Poucas coisas podem atormentar mais a vida de uma pessoa quanto um ambiente de trabalho mesquinho. Uma delas é trabalhar como um escravo num trabalho para o qual não se está preparado ou realmente disposto. A possibilidade de os dois se unirem durante, no mínimo, 30 ou 40 horas semanais causaram certa vertigem em nosso recente nomeado. Contudo, Reinaldo vislumbrou, já mais tranquilo, a possibilidade de cair num daqueles setores chamados de “tranquilos”, cuja presença ou ausência não se faz sentir pela chefia imediata nem pela sociedade, a não ser pelos impostos.

No almoço com o pai e a mãe, aposentados após algumas décadas de serviços prestados ao antigo Ministério da Fazenda, jogou suas angústias na mesa. Eles responderam com uma tranquilidade didática.

– E se eu não gostar do trabalho?

– Pode passar em outro concurso de outra instituição pública – disse o pai.

– E se o ambiente de trabalho for ruim?

– É possível mudar de setor com facilidade, meu filho – respondeu a mãe com calma.

– E se não souber nada do trabalho?

– Aprende-se com a prática – refutou o pai com um riso de quem explica algo a uma criança.

– E se eu tiver a ideia de abrir um negócio meu? – em verdade, jamais pensara nessa possibilidade.

– Pede licença depois de três anos e espera para ver se vale a pena largar o serviço público e depois pode até dar um jeito de conciliar os dois – respondeu o pai com contundência.

– E se eu precisar de mais dinheiro?

– Só passar em outro concurso. Afinal, existem vários todos os anos e os da Câmara e do Senado estão sempre aí. E depois do primeiro, fica muito mais fácil passar, meu filho – a mãe replicou com racionalidade.

O camarão preferido de Reinaldo não foi tão apreciado quanto a refutação inquestionável de seus pais. Reinaldo parecia uma criança cujos medos do primeiro dia de aula lhe deixavam de ser uma angústia para se tornar uma esperança de novos rumos para sua vida.

***

Já em seu quarto e desconectado do mundo virtual, o jovem, com os olhos perdidos na fração do azul do céu da Capital da Esperança que sua janela lhe oferecia na 314 norte, se deixava levar por lembranças soltas de sua vida que o levaram até aquele momento. Lembrava-se dos dois anos que passara estudando para diversos concursos públicos. No início não era muito dedicado, já que trocava com facilidade a sala de aula dos cursinhos pela mesa de um bar na companhia de alguns amigos. Entretanto, como tudo na vida, o gosto da cerveja, das piadas e das pizzas da madrugada começou a não satisfazer mais o seu espírito. Ademais, a aprovação de Raquel no concurso da Secretaria de Saúde do Distrito Federal fornecia-lhe um empurrão em suas ambições profissionais e pessoais. Ficar para trás não se é uma opção para um homem realmente apaixonado, pensava o jovem. Perder o respeito ou a admiração da amada era o que mais o angustiava. Era capaz de sobreviver a qualquer perda, menos a perda da namorada. De fato, Reinaldo era desses homens que preferiam perder a dignidade e até a liberdade, do que o amor da mulher amada.

Passou a largar os copos das mesas de bar e passou a sentar em cadeiras de cursinhos e a gastar as canetas de todas as cores para estudar mais. Formado em Geografia pela UnB, estava acostumado a ler no dia a dia para passar nas matérias. Mas os concursos que fazia exigiam, obviamente, mais do que um malandro MM. Era preciso se dedicar mais, mais e mais a cada dia. A um mês da prova chegou a estudar dez horas por dia, arrumando tempo apenas para mandar uma mensagem para a sua amada. “Foco, força e fé”, “Foco é sucesso”, “O que seu concorrente está fazendo agora?”, “O sacrifício vale a pena, pois a dor é temporária e emprego é pra sempre!”, “Zona de conforto é a aprovação”, “Viva o que os outros sonham viver” e “Lembre-se sempre do que te trouxe até aqui” eram frases recorrentes na sua transitória rotina de dedicação aos estudos.

Na semana da prova, descansou e assistiu a filmes e seriados com Raquel, sua principal motivação. Ele não declarava abertamente a importância da sua amada em sua dedicação, pois temia apresentar-se de forma dependente e subjugada, o que, na sua cabeça, significaria perder valor para sua adorável namorada. De certa forma, ela entendia muito bem a situação, mas também não gostava de tocar no assunto para si mesma, muito menos para o seu amado.

No dia da prova, Reinaldo fez uma breve revisão nos principais conteúdos dos direitos e viu um esquema de redações para concursos disponibilizado de forma exclusiva pelo seu cursinho na véspera da prova. A prova correu muito bem, o tema da redação “A importância da ética no serviço público brasileiro no século XXI” com a exigência de citar ao menos 2 leis exigidas pelo edital foi feita de maneira muito simples e objetiva, como postulado pelas dicas do cursinho. O restante da prova, organizada pelo CESPE, era bastante capciosa, já que havia peguinhas de toda natureza, mas que haviam sido desvendados a Reinaldo pelo cursinho. Acabara a prova 30 minutos antes do término, mas lamentou profundamente ter marcado o item 94 como correto, já que o item era obviamente errado. Teve, portanto, de marcar os dois gabaritos. Nesse instante deu um leve soco na mesa para externar, dentro dos padrões de uma sala de provas, a sua indignação consigo mesmo. 15 minutos depois, foi autorizado a sair com o caderno de provas.

Na quarta-feira subsequente, à medida que ia corrigindo a prova de acordo com o gabarito oficial junto com a família, a esperança de um futuro brilhante se desenhava de forma clara. O resultado final do concurso coroou o seu empenho e o fez ficar à espera da homologação e da nomeação, que veio 1 ano após a prova.

***

Às sete horas da noite, pontualmente, Reinaldo pegou a namorada em frente ao HRAN. Raquel abraçou-o com paixão e deu-lhe todo carinho de forma efusiva e apaixonada. Resolveram comemorar a dois no bar. Reinaldo pensou até em chamar uns 3 amigos que moravam perto do bar, mas Raquel insistiu para que eles aproveitassem esse momento de conquista a sós.

Entre beijos e desejos ardentes, o casal foi animado pedindo os serviços do bar: porções, cervejas e caipirinhas. Enquanto começavam a segunda porção de carne de sol, chegou uma senhora com pouco mais de um metro e meio perguntando em tom de publicidade:

– Quer ler a sorte?

Antes que Reinaldo desse o seu recorrente não ao que ele considerava perda de tempo e de dinheiro, Raquel disse efusivamente:

– Quero! Você adivinha o futuro?

– Claro! – respondeu a cartomante que já emendou. Você quer quantas cartas?

– Quanto é? – perguntou Reinaldo em tom de impaciência.

– É feio perguntar essas coisas – reprimiu-o a namorada – dá azar perguntar essas coisas. Vire quantas forem necessárias para sabermos nosso futuro.

A cartomante sentou e foi virando uma carta atrás da outra. Enquanto Reinaldo terminava sua caipirinha com cara de tédio, Raquel ia sendo tomada pelo entusiasmo mágico que a situação lhe causara. As cartas eram uníssonas: ambos viveriam um amor ardente e profundo que geraria filhos que passariam, devido à força do amor e à solidez financeira do casal, imunes aos desafios da vida, assim como os pais. Por fim, destacou apenas que o terceiro filho, cujo nome seria uma homenagem a uma pessoa célebre, seria um pouco mais agitado que os antecessores.

– Nossa! Top demais! – Raquel exaltava a simples cartomante como se exalta a uma estrela do sertanejo universitário de nossos tempos.

– Só revelei a verdade.

Enquanto Reinaldo olhava de forma desconfiada para a cena, a cartomante esboçava um leve sorriso que mostrava antes a espera por alguma retribuição do que qualquer outra premonição.

– Então, as cartas foram lidas...

– Muito obrigada! Qual é o seu nome, senhora?

– Inês de Castro.

– Quanto eu lhe devo, Inês?

– Quanto o seu coração mandar – falou com a simplicidade de quem sabe o poder aquisitivo de uma cliente em êxtase.

– 100 reais está bom pra você? – disse Raquel enquanto entregava a nota retirada do bolso.

– Se é o que seu coração manda, tá ótimo – disse a cartomante que se despediu com uma reverência leve com a cabeça.

Depois que a cartomante se dirigiu para um outro casal no mesmo bar, Reinaldo não conseguiu esconder mais a indignação com as palavras o que já mostrava na cara.

– Tu tá doida, Raquel? 100 reais para uma farsante dessas? Isso dá mais da metade da conta só para uma mulher que falou duas coisinhas que qualquer um poderia falar para agradar – esbravejou contendo a força da voz para que sua indignação não passasse dos limites da sua irritação com a cena.

– Amor, deixa de ser murrinha! Não quero saber de briga hoje não, estamos aqui pra comemorar e você vem com isso. O dinheiro já foi e agora a gente tem muito trabalho pra beber e comer todo resto antes de ir – com um beijo, finalizou a nutricionista que sabia como esfriar os ímpetos de seu amado em poucos instantes. Ela ainda pensou em questionar o namorado se alguma coisa dita pela cartomante lhe desagradara, mas viu que só ia ter dores de cabeça com isso e deixou de lado.

Fecharam a conta. Reinaldo fez questão de pagar tudo. Afinal, segundo ele, agora ele podia fazer alguns exageros sem se preocupar tanto com o futuro.

No carro, enquanto pegavam o Eixão na altura da 7 norte, começou a tocar Always, do Bom Jovi, em um desses programas de músicas antigas. Entre alguns olhares e beijos ardentes, ambos cantarolavam a música apaixonadamente. Até que, no final do primeiro refrão, entraram no Buraco do Tatu, de onde saíram mortos após uma trágica colisão frontal com uma caminhonete para fretes de pequeno porte.


(Fernando Fidelix Nunes)

sábado, 18 de janeiro de 2020

Poema "A Busca"


A Busca

Procurei em Deus
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de oração.

Procurei no amor
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de rejeição.

Procurei na política
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de manipulação.

Procurei na educação
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de profissão.

Procurei no futebol
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de competição.

Procurei na ciência
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de dissimulação.

Procurei no uísque
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de autuação.

Procurei na literatura
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de versificação.

Procurei na internet
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de enganação.

Procurei na academia
Sentido para a vida.
Encontrei a desilusão
Em forma de malhação.

Mas, assim como a vida,
A busca continua...

FERNANDO FIDELIX NUNES

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Traição Manifesta

(Ilustração feita por Enthony Keven)

Traição Manifesta


               
Homem é um bicho que gosta de se gabar para os outros por qualquer pretexto. Nos tempos de hoje, em que mito deixou de ser uma referência a culturas clássicas e personagens homéricos, tem muita gente que persegue a todo custo uma ação inusitada que lhe dê notoriedade. Não aquela notoriedade de pessoa transformadora das estruturas sociais que carregam nossa nação dia após dia para o subdesenvolvimento social, econômico e político. Infelizmente, as pessoas que se esforçam em batalhas cotidianas para transformar este país vivem no mais profundo anonimato e morrem no esquecimento de seus feitos verdadeiramente heroicos. A de que tratarei se destina mais a pessoas que fazem o uso das redes sociais para inflar o ego ou que exploram os ideais coletivos para ganhar o pão e o carro importado. Querem aquela fama de agente de um ato singular e inédito aos ouvidos e aos olhos de todos sem necessariamente ser grandioso. O gênero masculino, muitas vezes, é uma vergonha nessas empreitadas. Mas, convenhamos, também há muitas mulheres com esse perfil hediondo.

A peripécia que vou contar advém de uma roda de amigos reunida num bar da 408 norte. Verdade seja dita, vem de um indivíduo conhecido no bar, desses que só conhecem uma pessoa numa mesa com seis e busca, a todo custo, ser o centro das atenções. Boa parte das pessoas que fazem esse tipo são cortadas ou têm o foco diluído por conversas paralelas à sua exposição. Entretanto, o Agnaldo tinha o que é capaz de prender a absoluta atenção de qualquer grupo de marmanjos frequentadores assíduos dos bares da Asa Norte: um caso de adultério peculiar. Definitivamente, é o tema universal da atenção humana há milênios. Às vezes é possível fazer tragédias unicamente com a suspeita dessa desarmonia das convenções que criamos. Cada palavra sobre esse tema é ainda mais expressiva e densa se ouvida por pessoas que já consumiram algum litrão barato de origem duvidosa. É como se o álcool fosse uma desculpa para se aplaudir e rir das “mitadas” imorais dos outros. O ser humano sempre dá um jeito de mostrar o seu lado mais sórdido com um fato ordinário.

Você deve querer saber por que eu não deixo essa história exclusivamente com o narrador-personagem contando-a. Assim como tudo neste mundo, há uma explicação, o que, talvez, não satisfaça a curiosidade alheia, que é a maçaneta de todas as portas. Perguntei ao meu colega de bar se eu poderia botá-la num conto. Agnaldo, obviamente um nome fictício, fez careta, mas, quando eu ofereci uma cerveja barata em troca dos direitos autorais da anedota, consegui o aval do narrador original desde que eu a fizesse em terceira pessoa para que ele fosse tratado como grandiosíssimo personagem da literatura candanga (talvez ela nem exista para a maioria das pessoas) e que mudasse os nomes das referências reais. Por fim, ressaltou que eu não deveria explicitar alguns detalhes comprometedores, em respeito à tradicional família brasileira.

Com este conto, eu faço valer a minha palavra e a cerveja paga. Mas logo peço desculpas, pois, obviamente, a escrita perderá diversas nuances que somente um maníaco alcoolizado é capaz de enunciar em frente a desconhecidos.

***
Agnaldo, servidor com pouco mais de 30 anos de idade, no início de 2015, tinha acabado de mudar de setor na sede da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Depois de alguns incidentes interpessoais mesquinhos com alguns colegas, deixou as responsabilidades do Núcleo de Finanças pelos desafios do Núcleo de Admissão e Movimentação. Dessa forma, deixou de trabalhar com números em papéis para trabalhar com números vivos. No meio da papelada e do vai e vem de servidores, ele conheceu Dulce, “uma quase quarentona que valia mais do que duas de 19”. A afinidade entre os dois aumentava exponencialmente a cada minuto. A soma de sorrisos, toques e olhares era responsável pela multiplicação dos desejos, pela subtração das responsabilidades e pela divisão das atenções.

Após algumas conversas pelo celular, viram que havia apenas um entrave: um marido no meio do caminho. De fato, o grande obstáculo do adultério é o(a) cônjuge. Dulce sentia, nas palavras literais dela, “algo diferente”, mas era difícil deixar um casamento de 13 anos com um servidor concursado da Câmara dos Deputados por uma aventura não concretizada de algumas semanas. Além disso, o marido vivia grudado na esposa. Diante dessa difícil e, aparentemente, irresoluta circunstância, ambos pareciam destinados a um amor de Álvares de Azevedo.

Contudo, a política atravessou o caminho de ambos. Fora marcada uma manifestação para março contra o governo Dilma e outras derivações político-partidárias. Dulce, eleitora de Aécio Neves, estava insatisfeita com o governo e via no seu candidato a alternativa ideal para um novo Brasil. O governo do Agnelo em Brasília também contribuiu para essa decisão. Já o marido, Josué, era um desses petistas fanáticos que não engoliam a crença oposicionista. E em frente ao jornal – em papel, televisão ou celular – sempre proferia: “imprensa golpista”. As manifestações azedaram de vez o casamento, que vinha definhando nos últimos 2 anos. Embora Dulce fizesse verdadeiras odes ao casamento para amigas e parentes, não suportava mais seu marido resmungando os feitos do PT e malogrando a vida tediosa que compartilhavam diante da crise econômica nacional. Enquanto confessava isso para o quase amante pelo celular, este, que nunca ligou a mínima para a política e votava no PCO e no PSTU por diversão, teve uma verdadeira epifania que poderia tornar aquela relação um amor de Vinícius de Moraes.

– Tive uma ideia... saca soh!  

– Oq foi?

– Vai ter manifestação no domingo e vai dar muita gente né?

– Eh... pq vc tá falando nisso? Não aguento mais ouvir falar de política... Afff

– Tive uma ideia pra gente ter um dia pra gente... Vc fala pro seu marido que vai na manifestação de domingo e vem aqui em casa pra gente ficar junto. Aih ninguém desconfia de nada

– Naum sei... Isso pode dar muito problema...

– Eh só vc dizer que quer ir pra mudar o país e acabar com toda a corrupção que está infiltrada no poder... Vc faz um cartaz do tipo “por um novo Brasil” ou um simples “Fora Dilma” jah tah de bom tamanho. Ninguém vai desconfiar... Aih você fica comigo sem muito problema. Naum dá nada naum... Se der eh pouca coisa! =D

– Mas será que dá certo msm?

– O plano eh perfeito! Nem detetive desconfiaria disso! Eh mais fácil cair um dilúvio em julho do que seu marido descobrir isso

– Vamos vendo...

– Vamos resolvendo ;D

E foi isso que fizeram, sem tirar nem pôr. Dulce começou a reclamar de política enquanto passava o Jornal Nacional durante 3 dias e, por fim, proclamou que era dever dela se manifestar pelo Brasil. Josué, entusiasta dos discursos de Dirceu e Lula, quase teve um AVC, mas no final não tocou muito no assunto com a esposa, a não ser pela previsão falha de que muitas pessoas não iriam.

No dia da manifestação o casal se despediu friamente e o plano não causou suspeita nenhuma no marido. Afinal, ele viu a esposa saindo com o kit completo: camisa da CBF, calça azul, bandeira do Brasil e um cartaz branco escrito “Tudo pela família” em verde, amarelo e azul, respectivamente. No “apertamento” de Agnaldo, no STN, ambos materializaram as suas fantasias reprimidas, o que não deixou de chamar a atenção dos ouvidos dos vizinhos que queriam repousar em paz no domingo. Em casa, ela foi direto para o banheiro tomar um banho para que o marido nem desconfiasse de nada. Só na hora do jantar, durante uma reportagem do Fantástico, que Dulce se limitou a comentar que estava muito cheio o protesto e que não esbarrou com nenhuma pessoa conhecida, já que era muita gente na rua. Josué prestou atenção bem por alto e não tocou mais no assunto. Fora o crime perfeito.

 ***

A estratégia se repetiu com êxito no mês seguinte em outra manifestação “contra tudo que está aí”, como dizia o título de um dos eventos de adesão ao movimento no Facebook. Ela logo curtiu e compartilhou o evento outra vez com muitos contatos, além de, obviamente, compartilhar memes de toda ordem sobre toda a política tradicional brasileira. No trabalho, os ânimos se acalmavam. Afinal, a materialização do desejo costuma ser o maior calmante para uma paixão ardente que não se prolongará.

Na véspera combinaram tudo, inclusive algumas fantasias para tentar apimentar a relação. Não entrarei aqui em detalhes em respeito à família brasileira. Dulce foi direto para a casa de Agnaldo. A tarde de amor, entretanto, não foi como o combinado. Segundo Agnaldo, Dulce não se dispôs a certas fantasias com ênfase e reclamou bastante de forma incisiva sobre vários aspectos que são muito interessantes para uma mesa de bar às onze e meia da noite, mas não para uma leitura desta natureza, que preza pela moral e pelos bons costumes responsáveis por sustentar a família brasileira.

Os dois terminaram o encontro discutindo de forma praticamente irreconciliável. Ela disse o clássico: “não quero te ver nunca mais! Me esquece, seu idiota! Some da minha vida!”. Ele não deu tanta bola e foi curtir um pouco de futebol que passava na televisão. Ele afirmou que estava mais preocupado com o próximo concurso para sair da Secretaria de Saúde, mas a sua expressão corporal titubeante deixou entrever a todos da mesa que ele ainda havia algo ambíguo sobre seus sentimentos sobre aquela tarde insólita.

O ser humano é assim mesmo. A máscara da alegria enfeita o rosto de todos em um bar diante de companhias atípicas. Algumas pessoas sentem uma necessidade de criar uma farsa fictícia da realidade da vida. Não conheci profundamente o Agnaldo, mas ele me pareceu assim.  Afinal, um homem disposto a revelar um caso dessa natureza por uma cerveja não quer ser um mito, mas apenas ouvido.

Por fim, ela chegou em casa indignada, mas jogou a culpa na política e na crise econômica que ia atrapalhar o aumento salarial da sua categoria, o que foi suficiente para o marido não perder um átomo de confiança na fidelidade de sua esposa.

***

O terceiro encontro demorou mais tempo para acontecer, já que as pazes da separação do que nunca foi uma relação para uma mulher casada não se dá de maneira trivial. Os afazeres do trabalho, entretanto, forçaram a convivência entre ambos dia após dia. Eram processos trocados acidentalmente, reuniões sobre temas convergentes e uma infinidade de compromissos burocratas que fariam até inimigos mortais conviverem pacificamente de alguma forma.

No fim do ano, houve outra gigantesca manifestação, dessa vez com o impeachment encaminhado. Agnaldo, próximo ao cafezinho do setor provocou:

– Mais uma manifestação, né? Você podia sair de casa para gritar pelo Brasil e pela família de novo...

– Para com isso, dessa vez não... – disse a esposa frustrada em tom titubeante.

– Olha, juro que vai ser a última vez... – implorou o malandro sôfrego – última e inesquecível vez, nunca mais toco no assunto.

– Promete?

– Prometo pelo meu emprego nesta joça!

– A gente vai conversando então...

– A gente vai resolvendo – Agnaldo finalizou a conversa com um sorriso e uma piscada de quem não tinha dúvidas de que conseguiria o que queria.

No dia da manifestação, Dulce tomou um banho de spa, saboreando o sabão que lhe cobria de volúpia e dissimulação. Dessa vez, ela, devido ao céu nublado, resolveu ir só com a bandeira do Brasil. O marido não se deu nem ao trabalho de levantar da cama, alegando não aguentar tanta confusão no berço da democracia brasileira.

No “apertamento” de Agnaldo, ambos se beijaram loucamente. Por iniciativa própria, ela resolveu fazer uma dança especial para o amante com a bandeira do Brasil. Para não chocar os pilares da família brasileira, ressalto, por fim, que ambos ficaram nus e abraçados com a bandeira do Brasil, que os unia ainda mais.

***

Obs: Não acrescentei a condição imposta pelo personagem de que só poderia contar até o terceiro encontro para não estragar a graça da história. Afinal, o mistério é o maior afrodisíaco da leitura literária.  

(Fernando Fidelix Nunes)