sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Traição Manifesta

(Ilustração feita por Enthony Keven)

Traição Manifesta


               
Homem é um bicho que gosta de se gabar para os outros por qualquer pretexto. Nos tempos de hoje, em que mito deixou de ser uma referência a culturas clássicas e personagens homéricos, tem muita gente que persegue a todo custo uma ação inusitada que lhe dê notoriedade. Não aquela notoriedade de pessoa transformadora das estruturas sociais que carregam nossa nação dia após dia para o subdesenvolvimento social, econômico e político. Infelizmente, as pessoas que se esforçam em batalhas cotidianas para transformar este país vivem no mais profundo anonimato e morrem no esquecimento de seus feitos verdadeiramente heroicos. A de que tratarei se destina mais a pessoas que fazem o uso das redes sociais para inflar o ego ou que exploram os ideais coletivos para ganhar o pão e o carro importado. Querem aquela fama de agente de um ato singular e inédito aos ouvidos e aos olhos de todos sem necessariamente ser grandioso. O gênero masculino, muitas vezes, é uma vergonha nessas empreitadas. Mas, convenhamos, também há muitas mulheres com esse perfil hediondo.

A peripécia que vou contar advém de uma roda de amigos reunida num bar da 408 norte. Verdade seja dita, vem de um indivíduo conhecido no bar, desses que só conhecem uma pessoa numa mesa com seis e busca, a todo custo, ser o centro das atenções. Boa parte das pessoas que fazem esse tipo são cortadas ou têm o foco diluído por conversas paralelas à sua exposição. Entretanto, o Agnaldo tinha o que é capaz de prender a absoluta atenção de qualquer grupo de marmanjos frequentadores assíduos dos bares da Asa Norte: um caso de adultério peculiar. Definitivamente, é o tema universal da atenção humana há milênios. Às vezes é possível fazer tragédias unicamente com a suspeita dessa desarmonia das convenções que criamos. Cada palavra sobre esse tema é ainda mais expressiva e densa se ouvida por pessoas que já consumiram algum litrão barato de origem duvidosa. É como se o álcool fosse uma desculpa para se aplaudir e rir das “mitadas” imorais dos outros. O ser humano sempre dá um jeito de mostrar o seu lado mais sórdido com um fato ordinário.

Você deve querer saber por que eu não deixo essa história exclusivamente com o narrador-personagem contando-a. Assim como tudo neste mundo, há uma explicação, o que, talvez, não satisfaça a curiosidade alheia, que é a maçaneta de todas as portas. Perguntei ao meu colega de bar se eu poderia botá-la num conto. Agnaldo, obviamente um nome fictício, fez careta, mas, quando eu ofereci uma cerveja barata em troca dos direitos autorais da anedota, consegui o aval do narrador original desde que eu a fizesse em terceira pessoa para que ele fosse tratado como grandiosíssimo personagem da literatura candanga (talvez ela nem exista para a maioria das pessoas) e que mudasse os nomes das referências reais. Por fim, ressaltou que eu não deveria explicitar alguns detalhes comprometedores, em respeito à tradicional família brasileira.

Com este conto, eu faço valer a minha palavra e a cerveja paga. Mas logo peço desculpas, pois, obviamente, a escrita perderá diversas nuances que somente um maníaco alcoolizado é capaz de enunciar em frente a desconhecidos.

***
Agnaldo, servidor com pouco mais de 30 anos de idade, no início de 2015, tinha acabado de mudar de setor na sede da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Depois de alguns incidentes interpessoais mesquinhos com alguns colegas, deixou as responsabilidades do Núcleo de Finanças pelos desafios do Núcleo de Admissão e Movimentação. Dessa forma, deixou de trabalhar com números em papéis para trabalhar com números vivos. No meio da papelada e do vai e vem de servidores, ele conheceu Dulce, “uma quase quarentona que valia mais do que duas de 19”. A afinidade entre os dois aumentava exponencialmente a cada minuto. A soma de sorrisos, toques e olhares era responsável pela multiplicação dos desejos, pela subtração das responsabilidades e pela divisão das atenções.

Após algumas conversas pelo celular, viram que havia apenas um entrave: um marido no meio do caminho. De fato, o grande obstáculo do adultério é o(a) cônjuge. Dulce sentia, nas palavras literais dela, “algo diferente”, mas era difícil deixar um casamento de 13 anos com um servidor concursado da Câmara dos Deputados por uma aventura não concretizada de algumas semanas. Além disso, o marido vivia grudado na esposa. Diante dessa difícil e, aparentemente, irresoluta circunstância, ambos pareciam destinados a um amor de Álvares de Azevedo.

Contudo, a política atravessou o caminho de ambos. Fora marcada uma manifestação para março contra o governo Dilma e outras derivações político-partidárias. Dulce, eleitora de Aécio Neves, estava insatisfeita com o governo e via no seu candidato a alternativa ideal para um novo Brasil. O governo do Agnelo em Brasília também contribuiu para essa decisão. Já o marido, Josué, era um desses petistas fanáticos que não engoliam a crença oposicionista. E em frente ao jornal – em papel, televisão ou celular – sempre proferia: “imprensa golpista”. As manifestações azedaram de vez o casamento, que vinha definhando nos últimos 2 anos. Embora Dulce fizesse verdadeiras odes ao casamento para amigas e parentes, não suportava mais seu marido resmungando os feitos do PT e malogrando a vida tediosa que compartilhavam diante da crise econômica nacional. Enquanto confessava isso para o quase amante pelo celular, este, que nunca ligou a mínima para a política e votava no PCO e no PSTU por diversão, teve uma verdadeira epifania que poderia tornar aquela relação um amor de Vinícius de Moraes.

– Tive uma ideia... saca soh!  

– Oq foi?

– Vai ter manifestação no domingo e vai dar muita gente né?

– Eh... pq vc tá falando nisso? Não aguento mais ouvir falar de política... Afff

– Tive uma ideia pra gente ter um dia pra gente... Vc fala pro seu marido que vai na manifestação de domingo e vem aqui em casa pra gente ficar junto. Aih ninguém desconfia de nada

– Naum sei... Isso pode dar muito problema...

– Eh só vc dizer que quer ir pra mudar o país e acabar com toda a corrupção que está infiltrada no poder... Vc faz um cartaz do tipo “por um novo Brasil” ou um simples “Fora Dilma” jah tah de bom tamanho. Ninguém vai desconfiar... Aih você fica comigo sem muito problema. Naum dá nada naum... Se der eh pouca coisa! =D

– Mas será que dá certo msm?

– O plano eh perfeito! Nem detetive desconfiaria disso! Eh mais fácil cair um dilúvio em julho do que seu marido descobrir isso

– Vamos vendo...

– Vamos resolvendo ;D

E foi isso que fizeram, sem tirar nem pôr. Dulce começou a reclamar de política enquanto passava o Jornal Nacional durante 3 dias e, por fim, proclamou que era dever dela se manifestar pelo Brasil. Josué, entusiasta dos discursos de Dirceu e Lula, quase teve um AVC, mas no final não tocou muito no assunto com a esposa, a não ser pela previsão falha de que muitas pessoas não iriam.

No dia da manifestação o casal se despediu friamente e o plano não causou suspeita nenhuma no marido. Afinal, ele viu a esposa saindo com o kit completo: camisa da CBF, calça azul, bandeira do Brasil e um cartaz branco escrito “Tudo pela família” em verde, amarelo e azul, respectivamente. No “apertamento” de Agnaldo, no STN, ambos materializaram as suas fantasias reprimidas, o que não deixou de chamar a atenção dos ouvidos dos vizinhos que queriam repousar em paz no domingo. Em casa, ela foi direto para o banheiro tomar um banho para que o marido nem desconfiasse de nada. Só na hora do jantar, durante uma reportagem do Fantástico, que Dulce se limitou a comentar que estava muito cheio o protesto e que não esbarrou com nenhuma pessoa conhecida, já que era muita gente na rua. Josué prestou atenção bem por alto e não tocou mais no assunto. Fora o crime perfeito.

 ***

A estratégia se repetiu com êxito no mês seguinte em outra manifestação “contra tudo que está aí”, como dizia o título de um dos eventos de adesão ao movimento no Facebook. Ela logo curtiu e compartilhou o evento outra vez com muitos contatos, além de, obviamente, compartilhar memes de toda ordem sobre toda a política tradicional brasileira. No trabalho, os ânimos se acalmavam. Afinal, a materialização do desejo costuma ser o maior calmante para uma paixão ardente que não se prolongará.

Na véspera combinaram tudo, inclusive algumas fantasias para tentar apimentar a relação. Não entrarei aqui em detalhes em respeito à família brasileira. Dulce foi direto para a casa de Agnaldo. A tarde de amor, entretanto, não foi como o combinado. Segundo Agnaldo, Dulce não se dispôs a certas fantasias com ênfase e reclamou bastante de forma incisiva sobre vários aspectos que são muito interessantes para uma mesa de bar às onze e meia da noite, mas não para uma leitura desta natureza, que preza pela moral e pelos bons costumes responsáveis por sustentar a família brasileira.

Os dois terminaram o encontro discutindo de forma praticamente irreconciliável. Ela disse o clássico: “não quero te ver nunca mais! Me esquece, seu idiota! Some da minha vida!”. Ele não deu tanta bola e foi curtir um pouco de futebol que passava na televisão. Ele afirmou que estava mais preocupado com o próximo concurso para sair da Secretaria de Saúde, mas a sua expressão corporal titubeante deixou entrever a todos da mesa que ele ainda havia algo ambíguo sobre seus sentimentos sobre aquela tarde insólita.

O ser humano é assim mesmo. A máscara da alegria enfeita o rosto de todos em um bar diante de companhias atípicas. Algumas pessoas sentem uma necessidade de criar uma farsa fictícia da realidade da vida. Não conheci profundamente o Agnaldo, mas ele me pareceu assim.  Afinal, um homem disposto a revelar um caso dessa natureza por uma cerveja não quer ser um mito, mas apenas ouvido.

Por fim, ela chegou em casa indignada, mas jogou a culpa na política e na crise econômica que ia atrapalhar o aumento salarial da sua categoria, o que foi suficiente para o marido não perder um átomo de confiança na fidelidade de sua esposa.

***

O terceiro encontro demorou mais tempo para acontecer, já que as pazes da separação do que nunca foi uma relação para uma mulher casada não se dá de maneira trivial. Os afazeres do trabalho, entretanto, forçaram a convivência entre ambos dia após dia. Eram processos trocados acidentalmente, reuniões sobre temas convergentes e uma infinidade de compromissos burocratas que fariam até inimigos mortais conviverem pacificamente de alguma forma.

No fim do ano, houve outra gigantesca manifestação, dessa vez com o impeachment encaminhado. Agnaldo, próximo ao cafezinho do setor provocou:

– Mais uma manifestação, né? Você podia sair de casa para gritar pelo Brasil e pela família de novo...

– Para com isso, dessa vez não... – disse a esposa frustrada em tom titubeante.

– Olha, juro que vai ser a última vez... – implorou o malandro sôfrego – última e inesquecível vez, nunca mais toco no assunto.

– Promete?

– Prometo pelo meu emprego nesta joça!

– A gente vai conversando então...

– A gente vai resolvendo – Agnaldo finalizou a conversa com um sorriso e uma piscada de quem não tinha dúvidas de que conseguiria o que queria.

No dia da manifestação, Dulce tomou um banho de spa, saboreando o sabão que lhe cobria de volúpia e dissimulação. Dessa vez, ela, devido ao céu nublado, resolveu ir só com a bandeira do Brasil. O marido não se deu nem ao trabalho de levantar da cama, alegando não aguentar tanta confusão no berço da democracia brasileira.

No “apertamento” de Agnaldo, ambos se beijaram loucamente. Por iniciativa própria, ela resolveu fazer uma dança especial para o amante com a bandeira do Brasil. Para não chocar os pilares da família brasileira, ressalto, por fim, que ambos ficaram nus e abraçados com a bandeira do Brasil, que os unia ainda mais.

***

Obs: Não acrescentei a condição imposta pelo personagem de que só poderia contar até o terceiro encontro para não estragar a graça da história. Afinal, o mistério é o maior afrodisíaco da leitura literária.  

(Fernando Fidelix Nunes)


6 comentários:

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    1. Obrigado pelo elogio. Teremos cerca de mais 9 contos como esse neste ano. Haverá cada peripécia imperdível ^^.

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  2. Sério que o senhor chama a isto de conto literário? Há tanta ineficácia da técnica (uso simplório da perspectiva do narrador, desenvolvimento simplório e sem ritmicidade temporal, frustada exploração do cenário e da adjetivação, além da sonoridade precária das palavras -- para dizer o mínimo); ademais, o conto preza tanto pela banal proliferação de chavões, que é impossível levar a sério, muito menos apreciar a boa escrita. O texto mais parece uma tentativa fracassada de lacração do que realmente uma tentativa de narrar com êxito. Parece-me que a única serventia do texto é apresentá-lo para moças analfabetas funcionais com intuito de mostrar-se inteligentinho, cult e artista, escondendo a pretensão comê-las.

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    1. Meu caro, obrigado pelo comentário. Eu estava profundamente preocupado pelos diversos elogios que estava recebendo de amigos, conhecidos e outros leitores. Não tinha recebido nenhuma crítica até a sua. E, definitivamente, a unanimidade é uma burrice! Ser unânime é o mesmo que ser um idiota completo. Estava indo dormir triste por ser uma unanimidade, inclusive para leitores experientes que estão muito longe do rótulo de "analfabetos funcionais". Mas, felizmente, seu comentário me salvou desse mal.

      Sim, é um conto literário excelente. A minha ambição artística extrapola esse punhado de truísmos sobre a arte literária que você colocou aí, provavelmente copiados de receitas de bolo de críticas prontas e rasas - típicas de moralistas inaptos intelectualmente que querem diminuir os outros toscamente. Essa sua tentativa tosca de mesclar termos "técnicos" vazios com baixaria é realmente um mal da estética dos comentaristas vazios de YouTube, Facebook, Twitter e outros lugares virtuais. É bom para parecer alguma coisa para outras pessoas igualmente vazias. Faço por meio deste blog arte de verdade. Se você acha ruim, problema seu. Vou continuar escrevendo o que, sobre e como eu quiser.

      Vou falar bem simples e direto para você entender o recado: tá achando ruim? Então faz algo melhor e larga essa palhaçada de ficar achando que é um grande defensor da arte de qualidade com comentários "endireitadores" do mundo.
      Melhor, divulgue bons textos literários contemporâneos que possam ser lidos por mais pessoas.

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  3. Por quais parâmetros objetivos que você julga ser "um conto literário excelente"? Há uma imensa bibliografia sobre técnica literária -- digo, o fazer literário -- abordando todos aqueles conceitos que citei, além de outros não mencionados. Raimundo Carrero, Mário Vargas Llosa, Autran Dourado, Graciliano Ramos, Flaubert, Othon Garcia M., citando o mínimo necessário para o domínio da técnica, fazem parte desse escopo. Você certamente não saberia nem justificar e descrever *como* escreveu; simplesmente diria o porquê -- que certamente se inclina a uma espécie de "lacração" literária para mostrar-se profundo. O engano, contudo, é descarado. A crítica subtendida no conto tem a profundidade duma porta. Isso é sub-literatura, meu caro!

    "Faço por meio deste blog arte de verdade". Uau! "Arte de verdade"! De novo: diga quais parâmetros objetivos você usa para julgar como arte um texto tão banal como esse que apresentou.

    Por fim, eu lhe confesso que não estou *achando* ruim. Eu tenho certeza de que é ruim! E digo mais: a mim esse tipo de texto não me afeta; afeta tão somente a ti, pois passa vergonha diante das antigas gerações que se aventuraram na arte literária do conto e do romance, e que de fato obtiveram êxitos.

    Pode ter certeza que o meu trabalho eu farei -- e de fato já estou fazendo. Mas não tenho pressa para mostrar-me a fim de ganhar popularidade, muito menos de massagear meu próprio ego. Saber os próprios limites bem como entender objetivamente o que se está construindo são o princípio de honestidade intelectual que direcionam a atividade literária.

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  4. Larga de besteira. Você não entendeu que a história é de um narrador que a ouviu bêbado e contada por um bêbado num bar? Aí você acha que uma história de boteco que precisa ter partes cortadas para o suposto corno não relacioná-la com a esposa que o traiu vai ser detalhada? Que um bêbado vai ficar apegado a detalhes? Se você não entendeu ou não gostou da essência da narrativa, problema seu.

    Você acha mesmo que eu vou ficar dando satisfação de como eu escrevo para agradar um desconhecido que quer ficar batendo boca na Internet num debate sem fim? De jeito nenhum.

    "Parâmetros objetivos"? Isso é sério? Você sabe que os parâmetros objetivos são conversa mole e barata para ficar se exibindo para os outros. Por parâmetros objetivos, o que seria de Drummond, Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira, Carolina Maria de Jesus ou Maria Firmina dos Reis? Eu não sou um desses idiotas da objetividade, como dizia o grande Nelson Rodrigues. Nem pretendo ser elogiado/reconhecido por alguém que busca critérios objetivos. A objetividade destrói completamente a apreciação literária. Se você pensa diferente, eu não tenho nada a ver com isso nem faço questão de ser unanimidade em lugar nenhum.

    "Pode ter certeza que o meu trabalho eu farei -- e de fato já estou fazendo. Mas não tenho pressa para mostrar-me a fim de ganhar popularidade, muito menos de massagear meu próprio ego. Saber os próprios limites bem como entender objetivamente o que se está construindo são o princípio de honestidade intelectual que direcionam a atividade literária." Cara, esse discurso pode enganar muita gente trouxa, mas você e eu sabemos que isso é conversa típica de quem vai escrever algo durante anos e no final vai engavetar tudo e se fazer de vítima da incompreensão alheia. Muda esse discurso para o seu bem. Se você escreve ou conhece alguém que escreve melhor, publique e divulgue. Não tem mistério nenhum. Mostre seus parâmetros na prática e não em conversa fiada. A prática nos leva a algum lugar. Essa conversa fiada não nos leva a lugar nenhum.

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