sexta-feira, 27 de março de 2020

A Política do Eufemismo


A Política do Eufemismo


A ideia mais repetida por mim nas crônicas deste blog é a de que vivemos, nos últimos anos, numa realidade que nenhum grande nome da literatura conseguiria prever, isto é, a nossa realidade provavelmente será a principal obra de ficção da história da humanidade. Saramago (apesar de ter produzido “Ensaio sobre a Cegueira”), Mário de Andrade ou Clarice Lispector jamais conseguiriam expressar a angústia dos nossos tempos e, muito menos, o seu surrealismo trágico. Daqui a 20 anos, iremos olhar para este momento da história com um profundo e confuso assombro. Além das dores cotidianas que afligem a alma humana – como problemas familiares, amorosos e profissionais –, lidamos com duas das mais cruéis faces da vida humana: a morte e o sofrimento diante da nossa inépcia total para lidar com um problema tão grave e caótico.

Nessa conjuntura, observamos o uso indiscriminado de eufemismos para discutir a realidade brasileira. Para quem não lembra ou não teve aula sobre o assunto, o eufemismo é uma figura de linguagem que consiste, basicamente, na suavização do significado de um enunciado por meio de expressões que lhe tirem o “peso”. Em vez de dizer “ela morreu”, por exemplo, dizemos que ela não está mais entre nós ou que ela se foi. O que é estranho hoje é a maneira manipuladora como o eufemismo vem sendo utilizado, especialmente no atual contexto político e social.

O amigo do Queiroz anda chamando o novo coronavírus de “gripezinha” e “resfriadinho” de forma recorrente. Trata-se de uma pandemia que pode matar uma parcela considerável da população, principalmente idosos, e destroçar social e economicamente a sociedade brasileira. Ainda fala em ter histórico de atleta que lhe dá forças para sair imune da doença. O cara é incapaz de fazer flexões direito, mesmo antes da facada, e fica pagando de atleta para enganar trouxa. É um ótimo exemplo de uso do eufemismo para manipular e dissimular os fatos reais. A sorte do brasileiro é que ministros, deputados, senadores, governadores e prefeitos estão sendo mais responsáveis e eficientes que um presidente que espalha a confusão a todo custo. No fim das contas, ele gosta e sente um prazer inenarrável ao ser o centro das atenções de polêmicas toscas.

Do ponto de vista econômico, o governo projeta que o PIB do Brasil vai crescer 0% neste ano, contra todas as expectativas globais de tombo da economia brasileira e global. Diante de uma visível manipulação, eu vi comentaristas dizerem que é uma “previsão otimista” por parte do desgoverno. Previsão otimista diante de todas as variáveis contrárias é pura e simples manipulação institucional para enganar conscientemente a população mais exposta a essa crise, que precisa ser acolhida de forma mais eficiente para não cair nos braços da ignorância e do obscurantismo.

Por fim, aconteceram “mudanças” nas regras de concessão de bolsas de estudos dando prioridade a áreas de retorno imediato. Isso quer dizer que querem dilacerar as ciências humanas para que se tornem áreas cada vez mais sucateadas e sem perspectiva futura sólida para seus pesquisadores. Não se trata de uma troca de prioridades, pois são áreas já marginalizadas do ponto de vista do investimento, mas de um ataque à cultura e ao conhecimento capaz de fazer o ser humano ampliar a sua sensibilidade e mudar diversas políticas públicas para combater o subdesenvolvimento da sociedade brasileira. Claro que o investimento nas ciências humanas, como em todas as áreas, pode ser discutido e modificado, mas a maneira como foi feito esse processo é sorrateira, tosca e inadmissível.

Neste momento, o Brasil e o mundo precisam, acima de tudo, de conhecimentos e ações técnicas para confrontar as crises múltiplas oriundas da pandemia do novo coronavírus. A humanidade precisa pensar no seu bem-estar com base nas orientações das autoridades técnicas da área de saúde para conter a expansão da pandemia, ou seja, seguir em quarentena e com cuidados redobrados com a higiene – o que, para se materializar, precisa do auxílio do Estado Brasileiro, principalmente, por meio de vouchers. Já a mente pode ser tratada por meio da abertura de diálogos com várias pessoas próximas e de grandes nomes da literatura, da filosofia, da psicologia, da sociologia, da antropologia, da linguística, do direito, das ciências políticas, enfim, da humanidade.


(Fernando Fidelix Nunes)