sábado, 31 de março de 2018

Conto: Um Dia a Casa Cai

Olá!
Começaremos a publicar contos!
Eu (Fernando) vou começar com um conto que não é meu nem do Renato. Esse conto foi feito por uma pessoa muito próxima a mim que quis ser chamado de João Aleixo.
Apreciem um pouco de regionalismo!



UM DIA A CASA CAI

Sargento Raimundo telefonou  ao Cícero:
– O bicho está pegando! O Capitão quer falar comigo amanhã;  na primeira hora do expediente. Vamos agora  ao Jatobá. Lá conversaremos melhor. 
Montou na moto e partiu ao sítio Jatobá, situado à margem direita do rio Pajeú,  município de São José do Egito, porém bem próximo de Tuparetama.
Raimundo comprou o sítio há seis anos. Tinha especial apego à região, ali nasceu e morou até a adolescência. Furou poços, plantou frutíferas e cercou bem a propriedade. A safra de caju está iniciando e os pés de manga espada estão carregados de frutos verdes. Abriu a porteira, avistou um caju maduro ao alcance das mãos e foi coletá-lo. Olhou em direção ao centenário mulungu. A presença do mulungu  pesou na decisão de comprar o terreno. Quando foi ver a terra para comprá-la, avistou xexéus-de-bananeira se alimentando do néctar das flores do  mulungu. Tinha grande admiração pela ave e, quando menino, se sentia frustrado por nunca tê-la capturado. Faz plano que, após a aposentadoria, deixará as atividades ilegais e trabalhará apenas no sítio. Quando estava chupando o caju, Cícero apontou e Raimundo falou:
–Tenho boas razões  para pensar que  o Capitão quer falar comigo sobre a agiotagem que pratico no quartel e na cidade. Posso até afirmar que o agiota é você, eu apenas indico, porém ele não vai acreditar. Ninguém pode provar, mas todo mundo desconfia que você seja apenas meu testa de ferro. Segundo informações, os precedentes dele não são animadores; quando serviu em Custódia, um dia, reuniu toda tropa e disse que quem estava devendo a um Cabo dinheiro de agiotagem não deveria pagar e qualquer reclamação poderia provocar expulsão do criminoso da PM e a abertura de processo  para colocá-lo na cadeia.
Cícero responde:
– Está comigo a planilha com a contabilidade dos empréstimos; se é assim o procedimento do Capitão Olavo, o prejuízo será grande. Pior seria se ele desconfiasse do tráfico de drogas.
Raimundo: 
– O tempo é muito curto para pensar em assassiná-lo. Matar um Capitão  da PM não é como eliminar um pé rapado, mas a hipótese não pode ser descartada.
Raimundo lembrou-se do caso de Zé Aragão, rico fazendeiro: ele não queria pagar um dinheiro emprestado e Raimundo entendeu que seria mais fácil receber da viúva. O caloteiro e uma amante casada tiveram mortes consumadas na saída de um motel. Raimundo, deliberadamente, comandou a equipe policial que fez a ocorrência do fato. O sucesso do plano se completou quando familiares do morto mataram o marido da amante e a viúva reconheceu o cheque e quitou a dívida.  
Depois que a quadrilha de Raimundo entrou no ramo de tráfico de cocaína, assassinatos  de consumidores  falidos e traficantes aliciados pela quadrilha, que por vários motivos  são condenados à morte.  São corriqueiros esses homicídios em São José do Egito. Recrutar mão de obra nova ao tráfico de drogas e à pistolagem é muito fácil.
Um popular que gosta de acompanhar notícias policiais contou 10 homicídios de janeiro a outubro desse ano com as mesmas  características: os assassinos são sempre uma dupla encapuzada montada em moto, as vítimas são atingidas por muitos tiros, as  armas usadas são de grossos calibres, a polícia nunca chega no momento oportuno e nenhum desses homicídios foi esclarecido. A mais impressionante dessas mortes foi a do jovem de 17 anos abatido com 21 balas de pistola calibre 380 dentro de sua própria casa e na presença de familiares. A polícia espalha que é briga de gangs. O popular acha improvável bandidos pés de chinelo donos de armas poderosas e exímios atiradores. Desconfia que os matadores sejam policiais, porém, com medo, não comenta essa possibilidade. Ele tem notícias que em muitas cidades do Sertão nordestino existem quadrilhas compostas de policiais e ex-policiais e que apenas eles podem traficar drogas e roubar. Surgindo concorrência de algum paisano, este será morto. A justiça é conivente e o clero omisso. A situação é semelhante a certo trecho do “Sermão do Bom Ladrão” do padre Antônio Vieira, escrito em 1655: “De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só”. Padres deveriam recitar sempre nas missas este sermão, porém assim como os juízes, têm medo.
Ninguém desconfia de que esses homicídios tenham relação com Sargento Raimundo, embora os crimes aconteçam sempre em seus plantões noturnos. A quadrilha é organizada em níveis, apenas Cícero sabe que Raimundo é o chefe.    
Raimundo entrou na PM aos 20 anos de idade. Logo pegou fama de corajoso e decidido. Quando um Juiz resolveu intervir no presídio de Caruaru após uma  guerra sangrenta entre presos, Raimundo foi convidado à missão. O tenente PM interventor escalou Raimundo para ser o Chefe de Disciplina, dando-lhe  carta branca visando o fim do controle do presídio por reclusos. A pedido de Raimundo foi construída uma cela especial para torturar presos e que tinha como única entrada e saída o escritório da Chefia de Disciplina. A tortura era sempre uma surra; Raimundo e outro soldado mandavam o preso ficar apenas de cueca e de surpresa recebia um açoite nas costas produzido por uma vara de cerne de pau-d’arco-amarelo de 80 cm de comprimento e 2 cm de diâmetro. A primeira pancada, dada no lombo, era tão forte e doída que esmorecia qualquer ser humano e  a surra só terminava quando o preso desmaiava. Essa vara ganhou o apelido de  “direitos humanos”. Bastava um preso reivindicar esses direitos para que a vara fosse chamada. Foi um sucesso a intervenção, apelidaram o presídio de “convento” e os presos  chamados de “freiras”,  tal a paz reinante. Todos presos novos eram recebidos com esse espancamento, com exceção  daqueles que chegavam recomendados  por alguma autoridade. Os encarcerados sem recursos eram os que mais apanhavam. Se livre o pobre sofre, dentro da cadeia é muito pior.  Com o passar do tempo, Raimundo enxergou a oportunidade de ganhar dinheiro no presídio, rotineiramente com pequenos empréstimos a juros e venda de mercadorias  a presos e se aparecesse uma oportunidade praticava extorsão. Também era usual o assédio sexual feito por toda tropa a mulheres parentes de presos. Um bárbaro assassinato de uma adolescente, filha de preso, praticado por um carcereiro rejeitado por ela, desencadeou a volta de toda equipe ao quartel da PM. Confirmou-se: corno brabo é um desastre na certa. Mesmo não trabalhando mais na penitenciária, Raimundo perdeu pouco dinheiro nessa mudança; a cobrança era truculenta aos parentes dos presos devedores.   
Raimundo ordena:
– Coloque um motoqueiro para vigiar o Capitão e sua família a partir hoje. Claro que não teremos informações para reverter minha posição momentaneamente, mas a guerra será longa e ele  ganhará apenas essa primeira  batalha. A autoconfiança de Raimundo não é mera ilusão; ela se sustenta numa logística perfeita. A quadrilha consegue as informações que quiser da cidade e tem contatos valiosos nos municípios vizinhos.
Às três horas da manhã, Raimundo recebe telefonema de Cícero:
– O micro-ônibus que transporta estudantes que fazem faculdades em Patos foi assaltado antes de Brejinho. A mulher do Capitão é uma das vítimas. O motorista do micro-ônibus é o Pedro, que rapidamente deixou o pessoal de São José do Egito e foi para Tabira.
Raimundo não conciliou mais o sono. Às cinco horas partiu de automóvel para Tabira para falar com Pedro.
O motorista contou pormenores do assalto: os passageiros vinham de uma festa de formatura, todos muito chiques; foram quatro assaltantes jovens; levaram dinheiro, joias e celulares, porém o fato mais grave foi o estupro da mulher do Capitão. Um dos bandidos escolheu para estuprar a sobrinha da esposa do Capitão e ela se ofereceu para substituí-la. Um dos malfeitores disse que tinha sido convidado para um assalto e não para estuprar mulheres. O ladrão que parecia ser o líder do bando insistiu no estupro, porém aceitou a troca sugerida. Como os assaltantes falaram da Serra de Teixeira, Pedro acha que  eles são de Patos. Ao menos dois criminosos tinham sotaque paulistano. Raimundo pediu segredo da visita.    
Raimundo telefona a Cícero e ordena contatar receptadores de objetos roubados e traficantes de drogas em todas as cidades da região. Ele sabe que vai ser fácil a polícia desvendar esse crime, porém quer se adiantar e ser o responsável pela prisão dos meliantes. Se o plano der certo o Capitão deixará de importuná-lo.
Antes das oito horas Raimundo chegou ao quartel. Toda tropa já sabia do acontecimento. Tal o esperado, o Capitão não compareceu ao expediente. Ás dez horas o Tenente chamou Raimundo. Estava em sua sala um homem de nome Arthur, Sargento da PM lotado em Recife, que foi apresentado como irmão da mulher  do Capitão e pai da moça vítima do assalto. Também presente Pedro, o motorista assaltado. O Tenente ordena a Raimundo que prepare uma viatura, que irão fazer uma diligência no local do assalto.                                                                  
O Tenente foi no banco carona e Raimundo, Pedro e Arthur no banco traseiro. Nota-se que Arthur está perturbado de ódio ao extremo.
Arthur diz:
– Muitas famílias que migram ao Sul acham que mandando de volta ao nordeste filho bandido, haverá regeneração, bem como não será executado por policiais ou rivais do crime. Porém, a maioria não se emenda e bandido que aqui atua dessa maneira é morto rapidamente.
Cabo Antônio, o motorista, diz:
– Esse tipo de marginal deveria ser castrado.
Raimundo, confiando no sentimento da vingança entranhado na cultura nordestina, responde insuflando Arthur:
- Pode ter certeza, esses não ficarão vivos e devem sofrer um pouco para morrerem. Lembro-me de um caso em Caruaru: um homem de meia idade alugou a casa de fundos  e  seduziu uma garota de treze anos de idade, filha do senhorio. Os tios da menina se reuniram, prenderam o abusador, e antes de queimá-lo vivo amarrado em pneus de caminhão, caparam-no. Toda polícia sabia quem eram os autores da morte, porém ninguém moveu uma palha para processá-los. Ficou por isso mesmo.
Vasculharam bem a área, mas não conseguiram nada importante à elucidação do crime. O tenente diz que o melhor é voltar, chamar todas as vítimas visando alguma pista e fazer um inventário completo e minucioso dos objetos roubados. Raimundo assistiu ao depoimento das vítimas. O tenente decidiu que no  dia  seguinte, pela manhã, iriam a Patos pedir ajuda à polícia paraibana. Raimundo pediu o número do telefone de Arthur. Às vinte e uma horas Cícero telefona dizendo que em Flores, segundo um traficante, um pessoal de Afogados da Ingazeira  com essas características o procurou para trocar cocaína por joias, mas como não tinha a droga no momento e está esperando para amanhã um carregamento, trocaram maconha por uma joia e acertaram que  telefonariam confirmando a chegada da cocaína. Raimundo imediatamente  telefonou ao Tenente pedindo para não acompanhá-lo a Patos porque tinha uma emergência em seu sítio. O tenente concordou.
Raimundo pegou  Cícero e partiram para Flores. Junto com Mário, o traficante, planejou a cilada para capturar os meliantes: o local da prisão será uma tapera abandonada situada a dois quilômetros do asfalto. Cícero entrega a Mário uma  porção de cocaína tipo “escama de peixe” que será o chamariz para levá-los à emboscada. Mário liga ao chefe da quadrilha combinando o negócio para onze horas de amanhã.
         Vinte minutos após o Tenente partir para Patos, Raimundo telefona a Arthur dizendo que tem informações seguras de um comprador de ouro em Flores que uns rapazes de Afogados combinaram para vender joias hoje e o convida à diligência.  Arthur prontamente aceitou o convite. Raimundo pede-lhe que vista uma roupa de polícia visando à camuflagem na Caatinga.
Chegam ao local preparado à emboscada às nove e meia e assim terão tempo suficiente  para trabalhar os pormenores da ação. De dentro da tapera, Raimundo escolheu os lugares menos visíveis ao bando para aproximação da polícia no momento da abordagem. Fizeram uns remendos na tapera, deixando apenas uma abertura como saída rápida.  O fator surpresa e o maior poder de fogo serão o grande trunfo da polícia. Testaram os equipamentos de rádio e os quatros se acomodaram nos locais escolhidos para cada um.
Combinou-se com o traficante, que ele, acompanhado de um companheiro, se encontrará com os bandidos no asfalto, exibirá  a amostra da cocaína e os atrairá à tapera. Chegando à tapera averiguará as joias, fornecerá a droga para experimentação e dirá que buscará a quantidade de cocaína acertada na negociação.
Quando o traficante saiu, os bandidos ficaram ao redor de um prato preparando a cocaína para consumir. Raimundo comunica aos companheiros que é chegado o momento da abordagem, se aproxima da tapera e grita:
– É a polícia! Estão cercados! Saiam de mãos para cima ou vai acontecer o pior!
Os bandidos em primeiro momento ficaram imóveis, trocaram palavras e como todos estavam armados com revólveres decidiram-se pelo confronto. Saíram da tapera atirando para todos os lados. Três foram abatidos. Um, num salto circense, alcançou uma moita de mufumbo e desapareceu da vista de todos. Conferindo o estado dos três rapazes caídos, apenas um ainda respirava.  Raimundo deu um tiro de misericórdia na cabeça no rapaz ainda vivo. Sem perda de tempo iniciaram a caçada ao fugitivo.
Raimundo vasculha o local em que o bandido desapareceu e encontra sangue, sugerindo grave ferimento.  Uma juriti voou assustada de um fechado partido de favela entremeado de jurema-preta, indicando que  fugitivo está no local.
Raimundo grita:
– Os outros estão mortos, você tem a oportunidade de sair vivo, se entregue.  
O homem se rende. Pelas informações colhidas, Raimundo deduz que o sobrevivente é  o líder do bando. O ferimento no braço ainda sangra e o homem está esmorecido. Raimundo lhe dá um pouco d’água para  reanimá-lo e o algema abraçado em tronco de angico distante cento e cinquenta metros da tapera. Raimundo pergunta pelas joias e ele diz que não estão consigo. O soldado fica vigiando o preso, Raimundo e os outros vão revistar os mortos e nada encontram.  Confabulam sobre a situação e decidem que a melhor solução é matar o sobrevivente, enterrar os quatro em vala comum e incendiar o automóvel da quadrilha em lugar diferente.   Raimundo pega no porta-malas do seu carro duas picaretas, uma pá e um enxadeco e ordena  que Cícero  inicie a escavação da vala.
Raimundo volta  com Arthur  ao local onde está o bandido ferido e interroga sobre as joias:
– Temos certeza que antes do tiroteio você estava com as joias. A demora de socorro médico pode significar sua morte. Dizer logo onde estão as peças é mais sensato, sem elas não sairemos daqui.
O preso confessa:
– No início da fuga joguei-as em uma moita de alastrado perto de um grande pé mandacaru.
 Arthur enxerga uma bolsa e com uma vara a retira da moita de alastrado. Observando as joias reconhece a pulseira de ouro da filha. Retiram a algema do preso e o guia para o local onde estavam os cadáveres.
Quando chegam ao local Artur  diz ao bandido:
– Estuprador da sua laia não fica vivo!
O bandido ainda tenta correr, mas, debilitado, não consegue e Arthur acerta-o com três tiros.
No outro dia cedo Raimundo é chamado à sala do Capitão. Na presença de Arthur parabeniza-o pela missão e que depois falaria com ele a respeito de outras questões. Trata-o como amigo e não um subordinado. Raimundo convida os dois para almoçar um guiné em seu sítio. Prontamente aceitam. Combinam que ele iria agora e que Cicero os procuraria ao meio dia para guiá-los.
Raimundo segue ao sítio. Tinha prendido três guinés e iriam à panela. Tinha orgulho  da sua rapidez para tratar e cozinhar aves.
Ao chegar ao sítio encontra dois rapazes colhendo mangas. Solta um grito de alerta e um dos homens correu passando por baixo da cerca de arame farpado. O outro vem ao seu encontro, nota-se um adolescente de uns quinze anos. Diz que estavam com fome e resolveram comer umas mangas quase maduras. Raimundo, sob o domínio da soberba, resolve lhe dar uma lição que sirva como aviso: pega o menino pelo braço fortemente, saca a pistola,  esfrega a arma no rosto do garoto, com um empurrão o faz cair e aos chutes expulsa-o da propriedade.
Ao terminar de tratar as aves, vê que falta colorífico, para ele um tempero essencial. Irá a Tuparetama compra-lo. Quando abre o portão recebe um tiro no peito. O estampido é de calibre 12. Ainda enxerga o garoto espancado horas antes.  Saca a pistola, mas a vista fica turva. Pressente a morte.
(João Aleixo)

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