sexta-feira, 8 de junho de 2018

Diário: 24 de julho de 2011

(Ilustração feita pelo grande Leonardo B. Ferreira)

24 de julho de 2011.

Fiquei sem escrever por vergonha de mim. Não consigo nem me olhar no espelho. É tão ruim o que eu passei que eu não tenho nem vontade de contar. Nenhuma mulher no mundo deveria passar pelo que eu passei, nenhuma sequer. Mas quantas passam por isso mais de uma vez? Muitas mesmo. Nessa semana que passou eu reparei que muitas mulheres passam pelo que eu passei mesmo. Toda hora aparece uma notícia no jornal sobre isso. Mas elas têm a coragem de contar o que aconteceu para o mundo, eu não. Às vezes outras pessoas é que têm a coragem pra falar a verdade.

É engraçado como essa sociedade suja relativiza a violência de um homem contra uma mulher. Devia haver uma prisão automática para o homem que maltrata a mulher. Só assim nós não seríamos culpadas por destruir a vida de um homem quando, na verdade, somos vítimas. Pena que o mundo é cego. Cego para a injustiça, cego para desigualdade e cego para quem precisava ser visto.

Só estou enrolando aqui, porque no fundo eu não quero contar nada pra ninguém do que aconteceu. Mas este é meu diário. É como se eu sentisse a necessidade e a obrigação de falar a verdade a ele sobre tudo que aconteceu. Se eu esconder dele, eu falarei para quem? Minha família está lá em Minas, bem longe de mim, o que é ruim numa hora dessas. Dizem que família é para todas as horas, mas quando temos uma relação distante com a família, a família só serve para se convidar em casamentos e enterros, que são duas coisas muito parecidas às vezes.

Depois que alguém passa por algo parecido com o que eu passei, qualquer um vê que essa vida não vale a pena. Fernando Pessoa estava errado nessa. Eu realmente queria que fosse apenas um sonho, um sonho não, um pesadelo. Mas a vida não é tão simples quanto pode parecer. A vida é um pesadelo imperceptível ao coração frustrado focado em sobreviver à rotina. Bem acho que já enrolei demais é melhor falar logo tudo de uma vez para eu não ficar mais nessa. Que vergonha de mim!

O Henrique chegou em casa tarde e cheirando a cachaça. Ele se sente mais livre para beber quando os nossos filhos não estão em casa. Ele já chegou vomitando no banheiro. Um nojo absurdo. Depois a gente deitou e acabamos fazendo aquilo mais por convenção do que por paixão. Até aí nada demais. Na verdade isso já é vergonhoso, mas o que viria foi bem pior.

Só que na noite seguinte, enquanto ele tomava banho para sair eu vi o celular dele tocando. Era a Tereza. Não atendi o telefone. Quando ele saiu do banho eu coloquei para fora a ira que eu tinha dentro de mim. Xinguei ele e perguntei quem ele pensava que era para tratar o nosso casamento desse jeito. Chamei ele de canalha, cretino, vagabundo, filho da puta e tudo o mais. Não chamei, eu xinguei gritando com toda a minha força. Ele foi cínico fazendo cara de inocente. Até que eu gritei com ele que a Tereza nunca mais iria voltar para ele e que ele era um trouxa por achar que ela voltaria a dar uma chance a ele. Quando eu gritei isso na cara dele ele me deu um tapa na cara com toda a força que ele tinha e ainda me xingou: “cala a boca, desgraçada!”.

Só consegui olhar assustada pra ele. Ele simplesmente olhava para mim e pareceu também não acreditar no que tinha feito. Tive total repulsa a ele e a toda a casa. Não pensei duas vezes... saí correndo de casa. O Henrique não fez nada. Mentira. Ele tentou me segurar, mas eu ameacei chamar a polícia e ele me largou. Depois disso, eu fui embora de casa.

Andei pela Asa Norte sem rumo. Eu só chorava. Como era noite, vi poucas pessoas nas ruas. Quando eu via que ia passar perto de alguém eu me controlava, depois voltava a chorar. Sentei num banco atrás de um posto e escondi minhas lágrimas em meus braços nus. Quanto tempo fiquei assim? Não sei. Mas foi o suficiente para eu sentir a dor mais aguda da minha vida. Me culpei mais do que tudo. Como eu havia deixado a minha vida chegar àquele ponto e como sair dessa merda era o que eu mais me perguntava enquanto soluçava desesperadamente.

Quando um rapaz veio e me perguntou se eu precisava de alguma coisa, eu tive só o reflexo de dizer que não queria ajuda de ninguém. Agora eu entendo que eu tinha vergonha e medo absoluto de que alguém visse a minha cara machucada e roxa. Eu ainda não sabia, mas desconfiava. Saí dali imediatamente quase que correndo. Andei pela calçada rachada e acabei parando embaixo de uma árvore já entre 304 e 303 norte. Parei e chorei até as minhas lágrimas secarem. Sem lágrimas no rosto a razão tomou conta do sofrimento na minha mente. Eu ali não adiantaria de nada. Só estava me arriscando. Quanto tempo poderia ter passado? Eu não fazia ideia. O sofrimento nos faz perder a noção de muita coisa. Decidi voltar pra casa.

No caminho pude perceber a paisagem. Não me lembrava de ter andado de madrugada pela Asa Norte. As ruas eram tão vazias e tão calmas que eu me senti dona de tudo aquilo. Eu andava pelas calçadas e percebia que o verde da grama ganhava um tom tão melancólico. Era como se a ausência de luz lhes tirasse a vida. Os animais que estão soltos à noite também têm algo de triste. Alguns se sentem mais livres para revirar lixos, gatos sobem em cima dos carros, pombos brigam por um pedaço velho de pão e até os ratos correm com mais liberdade. A noite é isso mesmo, a liberdade daqueles que foram reprimidos durante o dia. Talvez seja por isso que eu não saia tanto à noite. Senti-me parte daquele meio todo. Um animal sem as repressões de costume tentando sobreviver. É impressionante como as coisas levam outras cores para a escuridão. A iluminação das ruas é apenas o mínimo necessário para o trânsito dos seres. É só uma tentativa do ser humano querer mandar na natureza. Mas a noite sempre será noite, não importa o que o homem faça.

Quando estava na 106, sim achei melhor caminhar para baixo pela beleza do caminho entre a 106 e a 107, comecei a pensar no que faria se visse o Henrique em casa. Não tinha a menor ideia do que eu ia dizer ou falar. Pensei em ir a uma delegacia nesse momento. Na verdade, eu acho que pensei nisso antes, mas só naquele momento eu fiquei realmente decidida a botar um ponto final em tudo isso. Antes fiquei apenas pensativa nessa hipótese, que era apenas um borrão no meu coração. Naquele momento eu comecei a ver o que poderia acontecer na delegacia. Primeiro eu teria de ir a pé até uma delegacia. Depois eu ia acabar indo tendo que contar tudo nos mínimos detalhes pra depois abrir uma denúncia. Abrir uma denúncia. Essa era a ideia que prendeu na minha cabeça. Eu simplesmente parei de andar nessa hora. Parei completamente tudo. Até de pensar. Senti um buraco no chão se abrir. Imaginei o total constrangimento, não só de contar a história, mas também de enfrentar um processo. O que seriam dos meus filhos? O que a nossa família ia pensar? O que eu ia fazer da vida? Para onde eu iria durante o processo? Na verdade vieram pelo menos umas 20 perguntas e questionamentos na minha cabeça. Só que eu não lembro de tudo e já estou com vergonha de deixar isso registrado ainda que ninguém veja nada disso.

Resolvi procurar um carro para me olhar num espelho e ver meu olho. O meu olho estava roxo e inchado. Senti vergonha de mim e raiva do Henrique. Depois senti raiva de mim. Como isso pôde acontecer logo comigo? Uma droga. Foi o que eu pensei, o que eu senti, o que vivi. Não fiquei muito tempo olhando pra não dar chance de alguém ver e perceber o que eu estava passando e sentindo. Nem sempre a vida é gloriosa. Na maioria das vezes, na verdade, a vida é dura, triste e indigna da dor que carregamos com ela. A vida passa, a dor e a melancolia ficam. O roxo na minha cara, sem dúvida, vai se desmanchar aos poucos, a dor no rosto vai passar, mas a angústia continua. Não importa o que eu fizesse, perdi a batalha e a guerra, definitivamente. Não via nenhuma saída. Confesso dei um pulo na igreja da quadra para ver se conseguia alguma luz divina. Rezei tudo que sabia. É engraçado que quando a gente precisa da divina providência não vem nada. Não tive resposta de nada. Sinceramente, posso confessar aqui que eu me senti abandonada até por Deus naquele momento. Onde estava Deus no meio de tudo isso? Onde Deus poderia me socorrer? Perguntei isso e outras coisas aos céus, mas não tive resposta nem orientação.

No fim decidi ir para casa e ver no que dava. Encontrei o Henrique aos prantos e me pedindo desculpas. Ele chorava como uma criança arrependida. E eu o abracei como se nada tivesse acontecido. Ele até resolveu cuidar de mim. Pegou um gelo e me abraçou de uma maneira como ele não fazia há anos. Disse que a Tereza tinha ligado para falar de um evento da família surpresa. Sei que era mentira, mas fiquei quieta. Eu senti que ele me queria como nunca na vida. É como se a culpa dele se tornasse carinho por mim. Fiquei quase que quieta o restante da noite falando coisas muito simples e fazendo gestos frios que opunham à quase entrega absoluta dele para mim. A vida é assim. No fim das contas, ninguém tem razão de nada, mas eu tenho total vergonha de mim. Vergonha acho que é uma palavras simples demais para o que eu senti de mim. Foi pior, bem pior.

Nessa semana ele foi um amor e até me levou para sair, mas eu sei que isso vai durar pouco. Eu sei. Só não sei o que fazer. Até lá sinto... não sei nem dizer o que eu sinto. Ainda bem que pelo menos não preciso mais escrever sobre isso. Já deu.

(Escrito, assim como os demais dias do diário, por Fernando Fidelix Nunes)

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