Prólogo
A
curiosidade é a maçaneta de todas as portas.
Eu
andava pela 113 norte, que é parte do meu tradicional trajeto para o Parque
Olhos d’ Água, quando vi um pen drive jogado no chão. De início, não dei muita
importância a ele. Só achei um desperdício estúpido alguém jogar fora um pen
drive. Afinal, tudo tem o seu valor em tempos de crise e o lugar de lixo é no
lixo.
Durante
o restante do trajeto, não pensei mais no dispositivo. No parque, fiz minhas
flexões de sempre e, em ritmo de trote, dei 3 voltas enquanto apreciava a
paisagem natural do fim de tarde. Realmente, é uma benção ter um parque
aconchegante do lado de casa. A natureza tem o poder de restaurar as energias e
pontencializar o nosso espírito, especialmente o pôr do sol com seus raios
parcialmente cobertos pelas nuvens – privilégio muito raro em nossas grandes
cidades.
No caminho de volta, topei com o
pen drive de novo. Contudo, depois que passei dele, a minha indiferença foi
substituída por uma curiosidade absolutamente irresistível. Será que ele ainda
funcionava? Haveria ali alguma playlist interessante que poderia ser
aproveitada? Será que o pen drive ocultava algum segredo íntimo ou era apenas
um repositório de documentos desimportantes?
O
meu interesse por aquele objeto levou-me a voltar, quando já estava quase em
casa, para pegá-lo. Assim que cheguei em casa, não fui tomar banho, como de
costume. Inseri o pen drive no meu computador o mais rápido que pude para
saciar a minha bisbilhotice clandestina.
Existia
apenas uma pasta chamada “Receitas”. Contrastando com o plural de seu nome, a
pasta só possuía um documento, que fora intitulado “Frango ao Molho”. Achei o
tamanho do arquivo muito grande para uma receita de frango, mas atribui esse
fato a possíveis imagens que ilustrariam um prato tão trivial. Já decepcionado
e envergonhado, resolvi abrir o documento para saciar por completo a minha
curiosidade, da qual eu já sentia imensa vergonha, já que minhas expectativas
me pareciam apenas um devaneio. Dessa forma, esperava, ao menos aprender uma
deliciosa receita de frango capaz de substituir as minhas tradicionais
lasanhas.
Entretanto,
ao abrir o documento, deparei-me com um diário com centenas de páginas.
Absolutamente estupefato, fui constatando que estava diante do relato íntimo de
anos da vida de uma alma perturbada. Confesso
que minha atenção no restante da noite foi direcionada exclusivamente para
aquele diário. Jornais, novelas, seriados e futebol ficaram em segundo plano
naquele momento. Nenhum seriado ou novela havia sido capaz de deixar-me tão aficionado
por um enredo.
Não
dormi naquela noite, devido à incontrolável vontade de saber o que havia em
cada página. Era fascinante ler cada trecho. Sentia uma voz doce, mas abafada
pelas dores da vida cotidiana narrar e refletir sobre tempos tão turbulentos
para si e para o mundo à sua volta. Só interrompi a leitura para ir ao trabalho
pela manhã.
Confesso
que não trabalhei direito no dia seguinte, devido ao sono e ao interesse em
saber mais sobre aquele diário. Como sabia que iria dormir pouco ou até nem
dormir, resolvi comprar umas três latas de energéticos para aguentar mais uma
maratona de leitura. Por sorte, era véspera de um feriado prolongado, e
consegui terminar de ler o diário antes de retornar ao trabalho.
Contudo,
esta é uma das ideias que ficam alojadas em nossas cabeças esperando a melhor
circunstância para agir. Uma semana depois, eu comecei a perceber as coisas de
outro jeito. Será que, se eu mantivesse essa história em segredo, eu não iria
me tornar cúmplice desse discurso que afronta a dignidade humana? Afinal,
alguém que vê um abuso e fica inerte é tão culpado quanto. Assim como a luz do
sol que inunda o céu, um novo mundo de possibilidades se abriu para mim. Os
fatos narrados no diário íntimo podem fazer as pessoas pensarem no dia a dia
mais sobre problemas arcaicos da nossa moderna vida privada e, de brinde, ainda
produzirem uma retrospectiva a respeito dos últimos anos da vida brasileira –
que viveu, por coincidência, seus anos mais perversos e complexos. Curioso ver
que a lâmina da opressão foi penetrando e levando à agonia mais uma de suas
vítimas à medida em que nossa nação caminhava passo a passo para amargurar os
seus piores dias.
Comecei
a esquadrinhar uma alternativa. O ideal, sem dúvida, seria que a própria autora
publicasse o seu texto, mas isso nunca ia acontecer. Nenhuma editora também permitiria a sua publicação sem a autorização da autora. Então,
eu precisava de algum meio para atingir as pessoas. O caminho era botar o texto
na Internet. Na Internet a censura é mínima, isto é, ninguém vai me impedir de
botar algo na rede. Descobri que o
Fernando, meu amigo, tinha acabado de criar um blog literário. Passei-lhe o
arquivo com o texto completo. Ele foi bastante receptivo com a ideia e me deu
alguns norteamentos. Em vez de publicar o diário na íntegra, seria melhor se
ele fosse disponibilizado aos poucos no blog. Afinal, esse povo de hoje tem
preguiça de ler texto longo na internet e prefere ser “alimentado” por
“pílulas” periódicas de arte. Só não em relação a seriados, que são merecedores
de maratonas. Por fim, decidi que o melhor seria publicar este livro em formato
digital para alcançar o maior número de pessoas até chegar à dona do diário e
ela mesma revele os seus escritos anteriores e posteriores sobre sua vida.
No
fim das contas, talvez você me julgue por, clandestinamente, divulgar a vida
íntima de alguém, ainda mais de uma mulher desconhecida. Mas o que você faria,
no meu lugar, se estivesse diante do crime perfeito? Por pretextos éticos, você
guardaria para si essa história? Deixaria sob as sombras o que merecia ser
iluminado para que não se repita de forma sistemática e cínica em pleno Século
XXI? Acha mesmo que o melhor caminho seria fazer comentários críticos a
moralistas de quinta e divulgar reportagens sobre a violência contra a mulher
para combater esse absurdo? Você conhece alguém que mudou de ideia sobre o
machismo lendo reportagens ou comentários em redes sociais? Sou sincero em
dizer que não conheço ninguém que passou por uma catarse após esse tipo de
leitura. Ademais, as outras alternativas podem ser convincentes, mas pouco
influentes na mudança de comportamentos nocivos à dignidade humana. Sejamos
diretos: a mudança ideológica não é abrupta, é um processo de etapas
rotineiras.
1º de maio de 2011
Pesquisei
na Internet e aprendi uma coisa interessante hoje. Quando a gente vai escrever
o primeiro dia de cada mês, tem que escrever “1º” e não “1”. Não lembrava dessa
regra da escola. Isso realmente vai ser útil pra mim, seja pra ensinar um
futuro neto ou para continuar escrevendo de onde eu parei.
É
verdade que eu fiquei um tempo sem escrever. Prometi que não ia voltar, já que
aconteceu aquela desgraça com meu diário anterior. Só que a vida segue e nossos
bons hábitos também devem fazer o mesmo.
Uma
coisa que me animou a escrever de novo foi que hoje o falecido João Paulo II
foi beatificado. Isso que era um homem bom! Não é igual a esse papa de hoje que
não toca o nosso coração. Para serem lembradas, as pessoas devem tocar nossos
corações não com protocolos, mas com ações rotineiras. Ele era um bom homem,
falava com todos e sempre buscou a paz no mundo. Quando eu o ouvia, eu aprendia
a perdoar. Nunca vou me esquecer da pomba demorando pra sair de perto dele num
discurso perto da sua morte. Ele era cercado por uma energia divina!
Bem...
melhor eu voltar a escrever depois.
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